Gabriel Irinei Covalchuk

O DEUS QUE “NÃO” DEVE SER REPRESENTADO: QUESTÕES POLÍTICAS, SOCIAIS E RELIGIOSAS NO ISLAMISMO E NO CRISTIANISMO DO IMPÉRIO BIZANTINO NA ANTIGUIDADE TARDIA

Introdução
Busco mostrar nesse texto como as imagens, sejam elas de santos (ícones) ou pinturas foram interpretadas tanto pelo islamismo, quanto para o cristianismo, fazendo assim uma distinção entre as visões presentes no oriente dentro da antiguidade tardia.

Apesar do senso comum ligar o iconoclasmo sempre a discussão de cunho religioso, tal postura também pairava sobre questões políticas e sociais, não é atoa que os defensores das imagens sempre alegam seu caráter pedagógico, ainda mais em uma sociedade que quase ninguém sabe ler. A questão política tem sua relevância principalmente no Império Bizantino, pois os monges estavam crescendo em poder econômico, político e social com as imagens presentes em seus mosteiros, assim uma postura régia iconoclasta amenizaria tal desenvolvimento.

Nesse sentido, busco mostrar às justificativas presentes em ambas as religiões (islamismo e cristianismo), tanto a favor das imagens, quanto a sua recusa. Para os islâmicos, em uma perspectiva maometana, Deus está em tudo, e tudo é manifesto por Deus, sendo assim ocorre a impossibilidade representativa do divino e o problema de uma possível figuração tornar-se uma idolatria. Os cristãos por sua vez, tem uma base religiosa presente em Hebreus, capítulo 11 e versículo 1, “A fé é a garantia dos bens que se esperam, a prova das realidades que não se veem” (Bíblia de Jerusalém, 2002, p. 2097), ou seja, ambas religiões se aproximam no questão do invisível e a abstração de Deus.

Primeiro e segundo ciclo iconoclasta
Sabemos que as três religiões abraâmicas (judaísmo, cristianismo e islamismo) temem a cólera de Deus em caso de transgressão. Algumas determinadas visões uniram-se de certa forma, como o fato que será apresentado ao longe do texto, a aversão às imagens nos rituais religiosos e até mesmo na casa dos fiéis.

Por mais que sempre que abordamos o tema iconoclasmo vem a mente o Império Bizantino, para Machado (2001) existiram quatro fases da iconoclastia, sendo que nesse trabalho, segundo sua perspectiva, abordaremos apenas a primeira e a segunda.

“O antigo interdito da imagem – nas culturas judaico-cristã e islâmica e na tradição filosófica grega – constituiu o primeiro ciclo do iconoclasmo. O segundo ocorreu durante o Império Bizantino; mas precisamente nos séculos VIII e IX, quando a produção, a disseminação e o culto das imagens foram proibidos, ao mesmo tempo em que os adeptos da iconofilia e da iconolatria perseguidos e executados, e os quadros destruídos ou queimados em praça pública”. (MACHADO, 2001, p. 10)

Islamismo
Até hoje existe inúmeras interpretações sobre o Corão, como é o caso dos Sunitas e Xiitas, percebemos as divergências de visões também a respeito das imagens. “O versículo 5/40 do Corão, por exemplo, proíbe as ‘pedras revestidas’, nome que, na Arábia pré-islâmica, era dado às pedras esculpidas e adornadas com figuras, geralmente utilizadas no culto religioso” (MACHADO, 2001, p. 8). Seguindo o versículo 59/24, fica claro que o único merecedor da adoração é Deus, o que torna impraticável qualquer figuração divina, ainda mais sobre o conceito maometano metafísico de Deus, abordado anteriormente.

Como o historiador não pode generalizar, alguns islâmicos, devido a sua interpretação dos textos para eles sagrados, tem sua conduta iconoclasta, que embora tenha começado na Antiguidade Tardia, estendido para a Medievalidade, possuem um forte reflexo atual:

“Achamos que essa discussão é relevante por causa da recente destruição de monumentos culturais pelas mãos dos islamistas e relacionada, por numerosos críticos, como ações características do mundo muçulmano: vandalismo, medieval, baseado no fundamentalismo religioso, retrógrado e «Primitivo». O caso paradigmático foi a destruição das estátuas budistas em Bamiyan (Afeganistão) levadas a cabo pelo governo islâmico talibã em 2001. Este infeliz evento foi, como Barry definiu, a última condenação do mundo ocidental ao Islã. Estas ações foram interpretadas - erroneamente, pensamos - como uma continuação das práticas muçulmanas medievais e uma tradição iconoclasta que já emerge no alvorecer desta religião” (JAFFE, 2011, p.3).

Jaffe (2011) acaba fazendo um juízo de valor, chamando a cultura islâmica de retrograda e primitiva, como historiador tal julgamento não é cabível, o fato atual ocorre devido às interpretações anteriormente citadas e rejeição pela cultura do “outro”.

Iconoclastia
O iconoclasmo no Império Bizantino segundo Lemerle (1991), tem um duplo aspecto, religioso e político. Na questão religiosa o seu caráter era referente à preocupação dos imperadores com a religião cristã na tentativa de purificá-la, pois com as imagens presente nos ritos, na sua ótica, ficava uma superstição próxima ao do paganismo. Ainda no sentido religioso, Lemerle destaca que as imagens foram colocadas sob a premissa da edificação e instrução, no entanto, foi atribuído a elas um poder miraculoso do protótipo e foi com essa justificativa que surgiu o movimento iconoclasta.  Essa postura teve que lutar também contra os ingênuos e os supersticiosos, povo, mulheres, monges e uma grande parte do clero. Percebemos que o povo (questão social), dependia das imagens/pinturas, para entender as passagens bíblicas, visto que não sabiam o grego, muito menos o latim.

No aspecto político, se descartamos a hipótese de que os imperadores iconoclastas tentaram conseguir adesão dos judeus ou dos árabes, a tentativa era então, impedir que a população da Ásia menor fosse seduzida pelo Islã. Ocorria também no século VIII o aumento considerável do número de monges e de mosteiros, o que caracteriza claramente no aumento de riquezas, privilégios e poder dos mesmos, percebendo esse perigo, político econômico e social que os iconoclastas conduziram uma luta insidiosa contra os anteriormente citados, na tentativa de dispersá-los e secularizar seus bens.

Iconoclasmo Bizantino
A iconoclastia nascente no Império Bizantino começou com o imperador Leão III (717-741), (sírio de nascimento e conhecedor da cultura islâmica), desencadeando uma querela das imagens. Podemos afirmar que para os Basileus (βασιλείς) iconoclastas, as imagens deveriam ser totalmente destruídas por três motivos, para que os fiéis não viessem a infligir o segundo mandamento do decálogo, ou seja, proibição da idolatria; para romper o poder dos monges, visto que eles estavam com grande prestígio popular devido à propagação das imagens em seus mosteiros, e a tentativa de evitar a intervenção armada dos muçulmanos. Sobre esses motivos, a partir de 724, o imperador Leão III começou sua campanha contra as imagens, ordenando suas destruições. Em contrapartida, os bispos ortodoxos reagiram a favor delas e o papa Gregório II (715-731) condenou a iconoclastia de Leão III. No entanto, o imperador prosseguiu na sua política iconoclasta, inclusive contra seus fabricantes, conduta essa que será seguido por seus sucessores.

Podemos afirmar que Constantino V (741-775), filho de Leão III, foi o mais intransigente em seus decretos, além de proibir até mesmo a imagem do próprio Cristo, instaurou uma perseguição violenta contra os que continuavam a defender o culto aos ícones, como consequência, houve numerosos mártires. Leão IV (750-780), filho de Constantino, não era um iconoclasta no sentido literal da palavra, visto que não destruiu imagens, nem perseguiu os veneradores delas, mas aceitava as mesmas dentro das igrejas. Sua conduta não iconoclasta pode ser justificada pelo fato que sua esposa, Irene, respeitava os monges e venerava as imagens. Depois da morte do imperador, em 780, Irene tentou acabar com a iconoclastia convocando um concilio, o que repercutiu fortemente no Ocidente, mas não colocou um fim na querela contra as imagens.

As argumentações dos defensores iconodulos era a respeito do caráter pedagógico das imagens, como Dungalus na sua obra 'Responsa contra Claudium' afirma que uma coisa é adorar imagens, outra é através da história de uma imagem saber o que deve ser adorado. Para ele, somente o fato de analisar as escrituras sagradas já fica claro que as funções das imagens sempre foram para os ignorantes, ou seja, aprendiam nas paredes das igrejas e pelo olhar, o que não podiam aprender nos livros. O bispo afirmar que deve-sepossuir as imagens não como um propósito de adoração nas igrejas, mas apenas para a instrução das mentes tornando a atitude iconoclasta um erro, assim legitima suas ideias pelas narrativas bíblicas, como de Êxodo 25, 18 ; 37, 7  e Números 21, 7-8.

Considerações finais
As atitudes iconoclastas provocaram sérios conflitos, mortes e destruições, somente depois de inúmeras discussões sobre a importância ou erro de ter imagens de santos, que em 843 ocorreu o “Triunfo da Ortodoxia” e de forma definitiva foi confirmada a veneração (προσκύνησης) dos ícones, no entanto, os movimentos iconoclastas não cessaram, percebemos até hoje a atuação islâmica referente a aversão de imagens.

Outro fato que deve ser abordado, e até a divergência entre católicos e protestantes, enquanto os primeiros defendem o uso de imagens, tanto na esfera privada quanto na “pública” (igrejas), os protestantes são extremamente contra, e acreditam que a adoração (Λατρεία) deve ser dada apenas a Deus, e as imagens servem apenas para confusão e o perigo da idolatria.

Afirmamos que a cultura iconoclasta do islã teve total influência no Império Bizantino, sendo assim, sua conduta não foca apenas em destruir imagens (religioso), mas também em atacar instituições e tradições (político), que por sua vez, possuí total interferência no social, pois sem as imagens, os iletrados ficariam apenas na oralidade.

“Ao adjetivo iconoclasta, por sua vez, associa-se várias acepções: ‘que ou aquele que destrói imagens religiosas ou se opõe à sua adoração’, ‘que ou aquele que destrói imagens em geral’, ‘que ou aquele que ataca crenças estabelecidas ou instituições veneradas ou que é contra qualquer tradição’” (CUNHA, 2016, p. 3).

Referências
Gabriel I. Covalchuk é acadêmico do 4º ano do Curso de Licenciatura em História da UNESPAR, Campus de União da Vitória-PR. Foi bolsista de Iniciação Científica da Fundação Araucária de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico, vinculado ao projeto Linguagens e Tecnologias no Ensino de História, desenvolvido pelo LAPHIS sob orientação do professor Everton Carlos Crema e da professora Dulceli de Lourdes Estacheski Tonet. Atualmente é membro discente do Núcleo de Estudos Scrinium, que visa propor um diálogo interdisciplinar (História, Filosofia e Literatura) em pesquisas que detém o recorte temporal no período Antigo, Tardo-Antigo e Medieval.

JAFFE, Alessandra C. Iconoclasia y «aniconismo»:correspondencias entre el mundo islámico y el mundo cristiano. Entremons. UPF Journalof World History. Número 2 (novembre 2011).
LEMERLE, Paul. História de Bizâncio. Trad. Marilene Pinto Michael. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
MACHADO, A. O Quarto iconoclasmo e outros ensaios hereges. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001.
CUNHA, Jânio da.Iconoclasmo ou como destruir as imagens que nos circunscrevem.IV Encontro Regional Norte de História da Mídia. Rio Branco-AC, 2016.

12 comentários:

  1. Olá Gabriel. Será que podemos acrescentar também que a destruição de imagens e monumentos históricos por alguns grupos extremistas de radicais islâmicos (Talibâ e Estado Islâmico), buscam com isso aumentar sua visibilidade perante as sociedades ocidentais (consideradas como infiéis ao Islã) e ganhar adeptos para ingressarem em suas fileiras?

    Clésio Fernandes de Morais

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    1. Olá Clésio. Agradeço pela pergunta.
      Concordo plenamente com você, inclusive o fato de alguns movimentos feministas em atos de protestos utilizarem imagens e relíquias consideradas sagradas para determinados grupos religiosos, possuem além do repúdio, esse ideal de buscar visibilidade para o grupo e sua ação. No caso de radicais islâmicos segue essa mesma lógica conforme você já afirmou, tanto que essa recusa as imagens do oriente e ocidente (século VIII e IX), tem sua adesão pela influência islâmica.

      Espero ter contribuído, e me coloco a disposição.

      Abraços.

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  2. Olá Gabriel, parabéns pela elaboração do seu texto. De início, gostaria de dizer que se trata de uma produção narrativa que leva a diversas conjecturas, sobretudo, no tocante ao posicionamento das figuras políticas em manter ou romper com a adoração de imagens, bem como, as justificativas que utilizavam para legitimar suas posturas. Nesta acepção, minha primeira inquietação é: o que te levou a escolher esta temática e de que forma ela dialoga com a sua vida prática? Em segundo lugar, pensando que a representação do sagrado cristão remete a figuras masculinas (pai, filho e espírito santo), poderia me informar como ocorreu a inserção das facetas femininas dentro deste culto a imagens? (Pergunta de quem desconhece e tem curiosidade acerca da construção deste processo). Como as pessoas avaliavam estas tensões ao culto das imagens? De que modo estes iconoclastas, aqui pensando na esfera política, mantinham suas teias de sociabilidade para manter as redes de poder? Por fim, e para não me alongar demasiadamente, quando citaste o desconhecimento da população iletrada ao grego e latim, de que forma isso poderia ter modificado a estrutura cosmológica das pessoas dentro deste processo histórico, no sentido de acesso às passagens bíblica e educar-se religiosamente a partir da interpretação particular da mesma?

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    1. Este comentário foi removido pelo autor.

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    2. Boa noite prof Jessica. Agradeço pela pergunta.
      O que me leva a essa temática é devido as divergências históricas entre católicos e protestantes em relação a ter (ou não) imagens dentro da igreja. O objeto dialoga com minha vida prática pelo fato de eu ser pertencente a uma linha teológica que traça inúmeros argumentos contra as imagens. Para não ficar com uma visão unilateral dentro de um ambiente religioso pesquiso os iconodulos e as divergências com os iconoclastas, justamente para compreender como elas foram inseridas nos espaços "sagrados" e aderidas pela maioria da população.
      Sobre a questão da inserção das figura feminina como sagrada provém de uma influência grega. Exemplo desse ponto é a cidade de Turim, que adere as santas/imagens devido a serem adoradores de Diana, com a expansão cristã eles articulam e legitimam a figura feminina para adoração, provando através das cartas paulinas a importância da mulher em seu ministério.
      A maioria das pessoas eram iletradas o que gera uma tensão entre os indivíduos que necessitam das imagens para aprender e outros que possuem o conhecimento do grego e do latim. Claudio foi quase morto pela população devido a sua postura iconoclasta, no entanto, teve auxílio do imperador e de outros bispos, o que garantia e legitimava seu bispado (era o imperador que nomeava os bispo - cesaropapismo).
      Creio que a estrutura cosmológica era alterado pela interpretação particular surgindo inúmeras vertentes, que mais tarde serão condenados pela própria igreja e consideradas heresia. Exemplo é Menocchio que acaba desenvolvendo uma teoria da criação do universo.

      Espero ter respondido, me coloco à disposição.

      Abraços

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  3. Caro Gabriel, parabéns pelo texto, confesso que não havia parado para refletir sobre este tema tão interessante e ao mesmo tempo polêmico. Por trás da questão iconoclasta no Império Bizantino havia vários elementos que colocavam em questão a adoração de imagens, neste caso a influência islâmica. Gostaria que você desse sua opinião a respeito da recusa protestante em adorar imagens de santos? Devemos analisar isto numa perspectiva cultural ou de radicalismo exacerbado?

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  4. Boa noite Lidiana, agradeço pela pergunta.
    A recusa por parte dos protestantes é devido a uma interpretação teológica que já era idealizada no iconoclasmo, ou seja, as imagens levam a idolatria, deixando de lado a proskinesis (veneração) e colocando a latreia(adoração que deveria ser dada somente a Deus) na mesma hierarquia para santos, o que é condenado pelo segundo mandamento do decálago. Sendo assim, não considero um radicalismo, mas sim uma perspectiva cultural que provém de argumentos desde Eusébio de Cesaréia em sua recusa a produzir uma imagem de Cristo a Constança, irmã de Constantino, alegando que o Messias não deveria ser representado em pinturas, imagens ou figuras, pois nada chegaria perto a sua "glória".

    Espero ter respondido, me coloco a disposição.

    Abraços.

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  5. Primeiramente parabéns pelo texto. O seu texto permitiu compreender um pouco mais não somente do iconoclasmo, mas também sobre a intolerância religiosa de hoje. É importante que essas discussões aconteçam, pois esse problema perpassa a esfera religiosa e se torna em conflitos sociais.

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  6. Parabéns pelo texto Gabriel! Como ficou claro em sua explanação, as imagens são um instrumento de poder e de dominação que líderes de todos os tipos, inclusive os religiosos, se debruçam sobre as consequências de sua utilização e o impacto perante as massas que podem causar. Hoje vivemos num mundo em que a imagem, seja de qual tipo for, é muito presente e domina as mentes e os debates em todo o mundo, sendo já indispensável. Fico imaginando o impacto das imagens religiosas no mundo medieval, uma época em que a leitura e a escrita eram tão raras e elitizadas, tornando as imagens praticamente o único instrumento de comunicação das instituições religiosas e políticas com a grande massa.

    Oscar Martins Ribeiro dos Santos

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  7. Olá Gabriel, parabéns pelo seu texto.
    Minha pergunta é: Como os povos islãs vêem a adoração de images hoje e qual a relação deles com a iconoclastia oriunda do Império Bizantino ?
    Natália Alves de Almeida

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