Henrique Garcia Prado

A MESQUITA COMO REFLEXO DA PRESENÇA ISLÂMICA EM SÃO PAULO

São Paulo é caracterizada por sua multiculturalidade, característica que lhe foi atribuída desde o seu processo de consolidação histórica pelos muitos povos que ali se estabeleceram provindos de muitos lugares e de diferentes raças e religiões. Essas pessoas além de auxiliarem no desenvolvimento econômico da cidade, muito contribuíram para a pluralidade cultural da grande metrópole -em que se combinam valores tangíveis e intangíveis. Deste modo, podemos citar como exemplo o edifício da mesquita, principal objeto de análise desse breve ensaio e considerada a máxima representação material da religião islâmica, que rememora um passado que se reflete no presente na construção da paisagem da cidade. Logo, este ensaio prevê, uma síntese da construção histórica da mesquita, do estudo sobre a imigração árabe em São Paulo, sobretudo, nos séculos XIX e XX, e posteriormente, um resumo sobre a análise das cinco principais mesquitas que conferem a identidade islâmica na cidade.

Arquitetura islâmica: a mesquita
O primeiro indício arquitetônico islâmico coincide com o surgimento da religião muçulmana no ano de 622 d.C., que foi estabelecida pelo Profeta Muhammad (Maomé), na cidade sagrada de Medina - Arábia Saudita. Com a instauração da nova religião, o lugar construído que antes se designaria à residência do Profeta, se destinou ao primeiro templo religioso e local de cultivo da fé islâmica e atividades sociais atreladas à nascente religião. Portanto, a partir disso, se consolidou a denominada Mesquita do Profeta Muhammad ou apenas Mesquita do Profeta, organizada espacialmente a partir de um pátio retangular com uma série de colunas dispostas perpendicularmente e adjacente à “qibla” - linha imaginária que indica a direção de reza à Meca - que sustentam a cobertura do edifício (FARAH, 2001).

Este modelo influenciou uma série de outras mesquitas construídas posteriormente e em várias regiões do mundo, como a mesquita congregacional, estabelecida a partir do século VIII em construções de templos religiosos na Síria, na Espanha e no Egito, por exemplo, em que podemos citar, a Grande Mesquita Omíada de Damasco(706-714), a Mesquita de Córdoba(786-987), e a Mesquita de Ibn-Tulunno Cairo(876-79), respectivamente(ROCCO, 2005).

Apesar das variações geográficas e aderências de elementos culturais característicos de cada região, o edifício da mesquita pouco se modificou, perpetuando através do tempo e marcando, de fato, a presença material islâmica no local em que fosse implantado, inclusive, nas mesquitas construídas em São Paulo a partir do século XX. A respeito dos elementos compositivos essenciais de uma mesquita, Rocco (2005, p.89),demonstra;

“Todas elas apresentam um modelo regular, com pátio central, arcadas, uma fonte para as abluções, um mihrab, que é um nicho que indica a direção da prece e possui aspecto côncavo. Está instalado no muro pelo qual passa o eixo da qibla, onde é instalado o minbar destinado ao imame [líder religioso muçulmano] para dirigir a oração, tendo a mesma função do púlpito das igrejas cristãs”.

Em relação aos elementos compositivos externos da estrutura arquitetônica comuns às mesquitas, como o minarete – torre que acompanha a edificação e demarca o templo muçulmano no território, sendo comumente utilizado para que o imame do alto da torre conclame a comunidade para a reza na mesquita -, fonte para as abluções – podendo ocorrerem algumas mesquitas o uso de lavatórios distintosentre homens e mulheres -, e cúpula, Rocco(2005, p.89), descreve:

“[...] possuem estruturas auxiliares externas típicas: o minarete (...); a fonte para as abluções, pois o devoto deve estar em um estado de pureza ritual para rezar; e a cúpula, que é um símbolo cósmico em qualquer tradição religiosa e se tornou um elemento cada vez mais utilizado na arquitetura islâmica a partir da época seldjúcida[A denominada época seldjúcida tem início a partir da vitória dos turcos seldjúcidas que se expandem a partir do século XI sobre a Anatólia - região da atual Turquia] “.

Além do papel religioso desempenhado por essas instituições, a mesquita representa uma importante organização social, no que se refere às relações interpessoais entre os seus frequentadores, ou seja, o edifício não se destina apenas ao culto religioso muçulmano, mas também, à eventos e atividades sociais atrelados à religião, como afirma Iskandar (2000, p.2), sobre o papel histórico social da mesquita: “Nelas além de transmitir o conteúdo do Alcorão, também ensinava-se literatura, gramática, poesia e aritmética”.

In FARAH, 2001, p. 46.


O imigrante árabe em São Paulo, século XIX e XX
Desde muito cedo na história da formação do Brasil, a cultura árabe esteve presente em nosso país, trazida e fundida à nossa cultura identitária pelo colono português, isso porque, a Península Ibérica havia sido ocupada pelos árabes nos primórdios do século VIII d.C., ou seja, bem antes dos colonos chegarem aqui. No entanto, somente no final do século XIX foi que os primeiros imigrantes árabes desembarcaram no Brasil, trazendo consigo saudades, memórias e o desejo de “Fazer a América” - almejo da rápida ascensão econômica e retorno à terra natal.

Nos primeiros tempos desembarcaram no país, principalmente no Porto de Santos no litoral de São Paulo, imigrantes árabes cristãos com maior grau de instrução acadêmica, fugindo da hegemonia do Império Turco-Otomano, em contrapartida, no início do século XX, chegaram ao país, em sua maioria, pessoas humildes e uma maior quantidade de imigrantes adeptos à religião islâmica, que partiram de seus países de origem pela falta de oportunidades e principalmente pela escassez econômica gerada por conflitos locais e desestabilidades governamentais, como constata Osman (2011, p. 169);

“No caso do grupo em análise[objeto de estudo da autora], foi a falta de recursos econômicos, as dificuldades de subsistência, a falta de perspectivas, a necessidade de se buscarem melhores condições para a família que determinaram o processo imigratório, sendo tais aspectos mais um diferenciador de nossa colônia [árabe] ”.

A maior parte dos imigrantes que desembarcaram em Santos se dirigiu à cidade de São Paulo, na qual, ao contrário de outras comunidades, ocuparam diversas regiões desde a periferia até uma significativa concentração na região central da cidade, como nos arredores da Rua 25 de Março. Se dirigiam a esses locais motivados pelos laços familiares, de solidariedade e relacionamento de patrícios pré-estabelecidos na cidade, que os receberam e os inseriram na sociedade e no trabalho. Essa localização urbana também influiu na decisão e preferência de certa atividade econômica desenvolvida por esses imigrantes recém-chegados, a atividade de mascatear, que consistia em vender produtos nas ruas da cidade e em outras localidades:

“A opção pela atividade de mascateação teve diferentes e variados motivos, mas um ponto fundamental em comum era o desejo de rápido enriquecimento, ascensão social e possível retorno à terra de origem com o sucesso alcançado, mesmo que iludidos pelo sonho da fartura a ser alcançada facilmente (OSMAN, 2011 p. 173) ”.

Outros fatores importantes para esses imigrantes, diz à manutenção e perpetuação da cultura e religião no Brasil, que ocorreu de maneira distinta para as duas principais comunidades de árabes que vieram ao país -os árabes cristãos e os árabes muçulmanos. Os imigrantes muçulmanos foram os que, num primeiro momento, tiveram maior dificuldade de integração ao país, devido ao Brasil contar com uma maioria de adeptos da religião cristã, portanto, os ensinamentos e valores dessa comunidade foram propagados com maior rigor em relação aos pais com os filhos muçulmanos, do que com os da comunidade de árabes cristãos, que encontraram maior flexibilidade de adaptação no país pela proximidade religiosa exercida por eles (OSMAN, 2011).

Apesar das dificuldades de inserção e da menor quantidade de imigrantes árabes muçulmanos no início do século XX, com o empenho da comunidade, foi o suficiente para a fundação de um centro islâmico “mussala” no ano de 1926 pela “Sociedade Beneficente Muçulmana Palestina – SBMP”, que teve o nome “Palestina” abolido para que pudesse incorporar diversos povos, sendo refundada em 1929 por “Sociedade Beneficente Muçulmana - SBM”. Ainda que, estivesse em um pequeno espaço no bairro da Mooca, a instituição era o prenúncio de uma mesquita que viria a ser erigida um pouco mais tarde no Cambuci, a Mesquita Brasil, e que de fato, a partir desse momento, passaria a representar a materialização e a presença da cultura islâmica na cidade de São Paulo (PINTO, 2005);

“Um de seus objetivos [da SBM] era construir uma escola para alfabetizar os novos imigrantes na língua portuguesa, mas tamanho foi o empenho na comunidade, que passou a perseguir também a construção de uma mesquita, originando a primeira mesquita fundada em nosso país, em 1946: a Mesquita Brasil [...] (FERREIRA, 2007, p.91) “.

Após o estabelecimento da primeira mesquita em São Paulo e com o cessar da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), novas levas de imigrantes muçulmanos chegaram à cidade, logo, foram erigidas outras mesquitas em bairros distintos, pois, em geral, a localização do templo religioso está relacionada à concentração urbana de comunidades islâmicas. À vista disso, foram construídas quatro mesquitas na cidade, uma ao sul – em Santo Amaro (1971), outra no extremo leste – em São Miguel Paulista (1978-1982), e duas na região central de São Paulo – no bairro do Brás (1985); (2002).

A mesquita como reflexo da presença islâmica em São Paulo
A partir do estudo do autor a respeito das cinco principais mesquitas de São Paulo (2017), foi possível identificar a presença de elementos tipológicos característicos da arquitetura tradicional islâmica nos templos muçulmanos construídos na cidade, como a presença da arquitetura “neo” mameluca na Mesquita Brasil (1946-1956);

“A arquitetura mameluca foi desenvolvida na Dinastia Mameluca no Egito e na Síria, entre o período de 1250 e 1517. Caracteriza-se pelo intenso uso de cores, cúpulas nervuradas que surgem a partir de tambores altos e minaretes escalonados com galerias e belvederes. O estilo ‘neomameluco’ é a retomada das formas arquitetônicas e decorativas da arquitetura produzida nesse período (PRADO, 2017, p.32) ”.


http://footage.framepool.com/en/shot/326651054-qaitbay-mosque-minaret-cairo-dome



Acervo do autor (2017).


Outras referências identificadas pelo autor, foram o uso da planta centralizada com cúpula hemisférica sobre um cubo na Mesquita da Misericórdia Sobem – Sociedade Beneficente Muçulmana em Santo Amaro (1971), característica própriada tipologia encontrada nas mesquitas de Istambul, na Turquia, e finalmente,de elementos da arquitetura tradicional Persa, como o “iwan” - pórtico monumental, os minaretes delgados e a cúpula em gota na Mesquita do Brás “Muhammad Rasul Allah”- O Mensageiro de Deus (1985). Essas características nos permitiram compreender que houve a permanência desses elementos e, de fato, a presença e o reflexo da cultura islâmica na cidade, apesar da disparidade temporal e geográfica entre as mesquitas construídas em São Paulo com a primeira evidência no Oriente Médio – a Mesquita do Profeta Muhammad (622 d.C.).

Há ainda outras duas mesquitas do total das cinco principais presentes em São Paulo - a Mesquita de São Miguel (1978-1982), e a Mesquita do Pari(2002), que embora ser reconhecida pelo nome do bairro “Pari”, na realidade está localizada no bairro vizinho do Brás, pois, na ocasião de sua fundação já havia outra mesquita indicada pelo nome do bairro. Apesar de ambas possuírem os principais elementos constituintes da arquitetura religiosa muçulmana, a partir da análise realizada pelo autor (2017), não se encontrou correspondência direta a qualquer estilo islâmico definido.

Em se tratando da Mesquita de São Miguel, a análise nos levou a entender que a arquitetura da mesquita foi influenciada pela arquitetura realizada nos outros dois edifícios construídos anteriormente a sua concretização - a Mesquita Brasil e a Mesquita da Misericórdia Sobem -, e por fim, a Mesquita do Pari, que de fato, não possui nenhuma relação formal externa com o modelo tradicional da arquitetura islâmica, a não ser pela saliência na fachada do eixo do elevador que pode nos induzir à ideia de um minarete, contudo, são importantes instituições que, além de exercerem influência no território em que estão implantadas, representam importância a uma determinada comunidade.

Acervo do autor (2017).


Referências
Henrique Garcia Prado é bacharel em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade São Judas Tadeu, São Paulo - SP e membro do Núcleo de Estudos da Orientalidade - NEOriente: representações e identidade.Mail: henriquegprado@hotmail.com.

FARAH, Paulo Daniel. O Islã. São Paulo, 2001.
FERREIRA, Francirosy C. B. Entre Arabescos, Luas e Tâmaras: Performances Islâmicas em São Paulo. Tese de Doutorado. São Paulo: USP, 2007.
ISKANDAR, Jamil Ibrahim. A mesquita: o berço das escolas árabes. Revista Diálogo Educacional, PUCPR: Curitiba, Vol. I, Número I, 2000. p.1-3.
OSMAN, Samira Adel. Imigração árabe no Brasil: histórias de vida de libaneses muçulmanos e cristãos. São Paulo, 2011.
PINTO, Paulo Gabriel Hilu da Rocha. Ritual, etnicidade e identidade religiosa nas comunidades muçulmanas no Brasil. Revista USP, USP: São Paulo, Número 67, 2005. p.228-250.
PRADO, Henrique Garcia. A mesquita como representação da cultura árabe muçulmana em São Paulo. Relatório de Pesquisa Acadêmica. São Paulo: USJT, 2017.
ROCCO, Lygia F. Nasce uma nova forma de ver: para entender o mundo árabe. Revista Entre Livros, DUETTO: São Paulo, Número III, 2005. p.88-91.


6 comentários:

  1. Boa noite, primeiramente parabéns pelo artigo, foi fonte de uma leitura atenciosa e interessante.Você fez algumas considerações sobre a imigração árabe no Brasil, atualmente como se manisfesta esta cultura no estado São Paulo?
    Camilla Mariano

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    1. Boa tarde Camilla, obrigado pela leitura e pergunta. O recorte feito na pesquisa a respeito da imigração árabe no Brasil foi direcionado à expressão da cultura árabe muçulmana no município de São Paulo, no entanto, sabe-se desde o último Censo do IBGE (2010), que a maior concentração de muçulmanos do país ocorre no estado de São Paulo, e apesar desse levantamento considerar também os indivíduos de origem não árabe convertidos ao islã, ou seja, de não levar em conta a origem étnica do indivíduo, essa maior concentração está relacionada a aglomeração de comunidades de árabes, portanto, a maior ocorrência de árabes muçulmanos no país se dá no estado de São Paulo.
      Contudo, não houve na pesquisa um estudo mais aprofundado em relação às manifestações da cultura árabe no estado, mas a partir das pesquisas realizadas no município de São Paulo, é notável a manifestação material dessa cultura expressa nas mesquitas, que podem ser encontradas em regiões distintas da cidade, cada qual agregando um determinado grupo muçulmano e em outras expressões além das mesquitas, como por exemplo, em instituições sociais e religiosas e no comércio de produtos têxteis e alimentícios, principalmente, administrados por descendentes de imigrantes árabes que podem ser encontrados com facilidade na região central da capital paulista.
      Espero que pude esclarecer sua questão e fico à disposição para outros desdobramentos. Obrigado! Ass. Henrique Garcia Prado.

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  2. olá, boa noite, gostaria de parabenizá-lo pelo trabalho e ter informações sobre as contribuições das mesquitas em São Paulo, para a socialização dos imigrantes, tendo em vista que no texto é mencionado o papel dessas instituições religiosas no campo social.

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    1. Boa tarde Mariane, obrigado pela leitura e pergunta.
      Realmente as mesquitas não empenham apenas um papel no campo religioso, servindo como um local de oração, mas atuam também como centros sociais e de encontro da comunidade em eventos relacionados ao calendário islâmico e em cursos, sobretudo, do ensino da religião islâmica e do idioma árabe para muçulmanos e não muçulmanos, pois, de acordo com os preceitos da religião, a leitura do Alcorão e a compreensão do sermão nas mesquitas devem ser feitos em árabe e esse preparo do idioma é feito mesmo quando há a tradução simultânea para o português, como ocorre no sermão da Mesquita Brasil, por exemplo. Além dessas atividades sociais, a cada vez mais a preocupação de integração e acolhimento de refugiados, que da mesma forma, podem exercer sua fé e participar das atividades nas mesquitas, além de serem auxiliados pela comunidade.
      Espero ter contribuído e fico à disposição para outros desdobramentos. Obrigado! Ass. Henrique Garcia Prado.

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  3. Quero parabenizá-lo pelo excelente artigo. Sou professora de Ensino Fundamental I em São Paulo e gostaria de saber: Em sua visão, como podemos refletir sobre a utilização das instituições religiosas de forma que a compreensão sobre a diversidade cultural seja efetiva para as crianças?

    Ediliz Aparecida Ferreira da Silva
    Graduada em Pedagogia - Faculdade Anhanguera de Guarulhos.

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    1. Boa tarde Ediliz, obrigado pela leitura e pergunta.
      Eu não sou um profissional da educação, mas ao meu ver é de suma importância o reconhecimento e a discussão da pluralidade cultural na educação das crianças e jovens, pois, a partir disso, poderemos construir uma sociedade mais justa e tolerante às diferenças culturais e religiosas. Como exemplo constatado, posso citar a organização de palestras e atividades nas instituições de ensino com representantes de diversas crenças e culturas com a intenção de incentivar o caminho ao respeito e à compreensão ao próximo.
      Espero ter contribuído e fico à disposição para outros desdobramentos. Obrigado! Ass. Henrique Garcia Prado.

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