Jessica Caroline de Oliveira

“LAVAR O SEU SANGUE”: ENSAIO SOBRE A LEGITIMAÇÃO DA CONDIÇÃO DE ESCRAVO NO VIÉS ISLÂMICO(XII E XV)

“Só há escravidão como sistema social se esta constitui uma classe distinta de indivíduos pertencentes a um mesmo estado e renovando-se de modo contínuo e institucional, de tal modo que, ao estarem permanentemente asseguradas as suas funções cumpridas por essa classe, as relações de exploração e a classe que se beneficia delas também se renovam, como tais, regular e continuamente”. (MEILLASSOUX, 1995, p. 78) 

Levando em consideração que a escravidão não é algo cristalizado e imutável, pode-se perceber que entre os séculos XII e XV, houve uma modificação na estrutura das sociedades africanas em virtude da escravidão e do modelo utilizado pelos povos islamizados.Nos lugares afastados da rota comercial transaariana (mais ao sul do continente africano), o escravo encontrava-se à margem da sociedade; contudo, nas regiões mais próximas, havia a dependência pela escravidão, transformada pela nova interação escravista, comercial e utilitária do escravismo. Portanto, a escravidão havia se tornado a base do modo de produção, influenciando a formação social de diferentes espaços, como bem explicita Lovejoy (2002).Partindo destes pressupostos, o objetivo deste texto é refletir sobre a forma como os valores e justificativas utilizadas por povos do Oriente Médio, entenda-se aqui os islamizados, que adentraram nas rotas comerciais africanas e, a partir delas, abasteceram-se de mão de obra escravizada sob o respaldo legitimador do islã. E, mais do que meras trocas de mercadorias, o trânsito destes sujeitos fomentou a, posterior, reformulação da ideia de escravidão que havia no Norte do continente africano, o qual arraigado à escravidão doméstica, vê-se atrelado e dinamizado por um mercado específico de escravos que, em escalas cada vez maiores e, contando com diálogos cada vez mais próximos, islamizou não só o mercado, mas também, mercadores e, por assim dizer, parte dos povos africanos. Noutras palavras, o foco aqui não é pensar na África, e sim, a influência islâmica nela a partir do processo de escravidão.

O mundo islâmico tornou-se herdeiro da tradição da escravidão, interpretando-a de acordo com a sua religião. Face a estas colocações, Pacheco (2008) argumenta que o uso do Alcorão mesmo que não justificasse a escravidão, legitimava-a como algo natural. Por isso, pessoas livres não poderiam tornar-se escravas e somente seriam condicionadas à escravidão em casos de crime, dívidas ou indigência.

Diante disso, o Ku’ãn (Alcorão) é a base para compreender a justificativa islâmica da escravização, todavia, Talib (2010) esclarece que há somente duas passagens no livro que podem estar diretas ou indiretamente ligadas a ela. Na primeira delas, discorre-se que: “Um dos sinais (da presença divina) é ter criado os céus e a terra e a diversidade de vossos idiomas e de vossas cores”, apontando apenas para a diversidade física e linguística, isto é, nada apresenta acerca da escravidão. (TALIB, 2010, p. 834). A outra frase presente no Alcorão, em nada argumenta sobre superioridade em relação à raça ou fenótipos físicos, porém, admite a existência de “diferenças” entre povos, afirmando:

“Homens, nós vos criamos de um macho e de uma fêmea e nós vos constituímos em povos e em tribos para que vós conheçais uns aos outros. Mas, perante Deus, o mais nobre, é o mais fiel, pois Deus sabe, ele é esclarecido”. (TALIB, 2010, p. 834).

Nesta acepção, Pacheco (2008, p. 18) comenta que “escravizar era considerado um ato pio, quase uma obrigação do homem de verdadeira fé. Entendida desta maneira, para o escravo, era uma forma de salvação”, deste modo, grande parte desses escravos vinha das terras consideradas de infiéis. Essa expansão dos árabes alterou tanto o modelo de escravidão anteriormente difundido no continente africano (escravidão doméstica, também conhecida como escravidão familiar), quanto o número de cativos envolvidos no processo de captura, troca e venda. Partindo destes pressupostos, Albuquerque et al (2006) desvelam que a adoção do camelo como meio de transporte permitiu percorrer regiões mais distantes em menos tempo, além disso, possibilitava aguentar os riscos e intempéries do deserto, fosse de caráter climático, físico ou ataques de povos inimigos.

Inicialmente, os escravos eram adquiridos nas guerras santas, vindo de regiões fronteiriças as terras islâmicas, o que acabou por contribuir na formação e criação de mercados de escravos. Conforme escreve Pacheco (2008), esse intercâmbio comercial e cultural alimentou o tráfico por meio de rotas dispersas ao longo da Costa africana e localidades mercadoras próximas a ela, escoando produtos e “mercadorias” humanas. Os mercadores convertidos ao islã no norte da África, deslocavam-se rumo ao sul com seus produtos – espadas, tecidos, cavalos, cobre, contas de vidro e pedra, conchas, perfumes e, principalmente, sal –, trocando-os por ouro, peles, marfim e, cada vez mais, cativos; do Oriente vinham outras mercadorias produzidas e fabricadas, trocadas por alguns gêneros produzidos no espaço africano, entretanto, dava-se preferência aos escravos, como bem ressalta Talib (2010).Movia e dinamizava-se o comércio interno e externo africano, cujos (des)caminhos podem ser observados no mapa abaixo e que revelam as trajetórias operacionalizadas até os mercados árabes.

No tocante a este processo histórico, um ponto se faz pertinente esclarecer, pois, segundo Meillassoux (1995), não se deve confundir a implantação de famílias mercadoras islamizadas com a islamização das populações, afinal, são contextos diferentes. Além disso, aos poucos a produção escravagista deixa de ser um privilégio de soberanos e torna-se “popular”, visto que, com o advento dos mercados de escravos, qualquer comunidade poderia comprá-los. Entretanto, só poderiam ser escravizados os sujeitos não islamizados, sendo estes, destinados à produção agrícola até que se convertessem ou se educassem conforme os preceitos religiosos. Em relação aos elementos acima descritos, o autor expõe que:

“as misturas sociais consecutivas aos deslocamentos dos cativos, à deportação das populações, ao deslocamento dos soldados, à fuga das populações perseguidas, aos movimentos dos mercadores, a ameaça constante que pesava sobre tantos seres capturados, ao mesmo tempo que o desejo de todos de se aproveitarem da servidão dos outros, contribuíram para a constituição de um conjunto social muito imbricado, estendendo-se por milhares de quilômetros e cujos componentes, clãs, castas e classes se reconheciam, se opunham e se uniam sobre imensas extensões. Entre eles, e uns contra os outros, faziam-se alianças numerosas, diversas, frequentemente compulsivas, constituindo com seus laços um tecido social ‘simplético’.” (MEILLASSOUX, 1995, p. 43)

A rusticidade, rudeza, ignorância, inferioridade intelectual, amoralidade e práticas selvagens eram traços de predisposição e predestinação utilizados para subjugar uma comunidade.Afinal, esses povos entendidos como “inexistente social e politicamente” eram vistos como sem chefes políticos, o que implicava na sua incapacidade de entendimento e comunicação. Estas representações faziam-se valer na captura de cativos, relações de alteridade e política entre caçadores e comunidades. A origem estrangeira definia os escravos como seres de uma espécie diferente, logo, inferiores; tolerados quando reconheciam o seu espaço. A estraneidade e exotismo do escravo davam-se pelas regiões geográficas e sociais longínquas, por isso, o escravo não era (ou raramente era) um ‘vizinho’. Frente a estas exposições, Meillassoux (1995) esclarece ainda que:

“A alteridade, combinada com a relação de classes que se estabelecia pela exploração no seio da sociedade escravagista, gerou uma reação de tipo racista para com os escravos. Racista, pois ao estado de escravos são sempre associados traços somáticos (feiura, deselegância...) e traços de caráter (estupidez, preguiça, dissimulação...).” (MEILLASSOUX, 1995, p. 60)

Complementando esse “olhar” islamizado sobre os africanos não islamizados, Pacheco (2008) argumenta que é possível perceber que a literatura do século V e dos séculos posteriores, sofreu uma influência dos fisionomistas, os quais, atribuem características físicas e morais aos escravos, apontando-os como feios, defeituosos e incapazes de fazer grandes coisas. Além disso, os lábios grossos denotavam estupidez, os olhos negros indicavam covardia e ignorância. Esses atributos seriam resultados de uma má organização do cérebro que ocasionava uma inteligência fraca.

Esboçadas as justificativas centrais e as características que condicionavam à escravidão pelo viés islâmico, é pertinente apresentar os liames básicos do mercado que dinamizava este comércio. Segundo Lovejoy (2002), o abastecimento e recrutamento de escravos não ocorriam em espaços públicos e era fortemente controlado pelo Estado. Deste modo, os escravos eram comprados dos traficantes (também conhecidos como mercadores de gado) que fixavam os preços conforme a proveniência, gênero, estado físico, aptidões e talentos do cativo. Para tanto, eram realizados exames físicos e psicológicos, feitos por médicos ou parteiras, que buscavam listar as qualidades e eventuais defeitos que cada sujeito poderia apresentar, auxiliando assim, na determinação dos preços que eram individuais e dessemelhantes.

A exigência de que os escravos fossem pagãos e a contínua necessidade de importações, tornou parte da África uma importante fonte de escravos para o mundo islâmico. Nem todos os lugares que tinham acordos comerciais com os árabes aderiram ao islã, alguns mantiveram ou garantiam o direito de manifestações da cultura ancestral. Noutros espaços, somente as famílias soberanas e aristocráticas converteram-se, todavia, houveram locais onde a conversão deu-se de toda a população, visto que, segundo Lovejoy (2002) era uma estratégia para escapar do cativeiro.

Para a tradição islâmica, a escravidão era um mecanismo de conversão, cabendo ao senhor de escravo a instrução religiosa. Todavia, como os islâmicos não poderiam ser escravizados, por vezes, essa atividade era violada. Isso se deve ao fato de que se tornar islâmico, ou aderir ao islã, não levava automaticamente à emancipação, mas sim, a gradual incorporação à sociedade do seu senhor. Estes escravos, quando homens, eram comumente utilizados no serviço militar e em tarefas administrativas, alimentando uma hierarquia política e social, ao passo que eram os camponeses livres, artesãos e populações servis não-escravas que mantinham a produção que alimentava e abastecia a sociedade, sendo os escravos ocasionalmente empregados em atividades agrícolas e fabricação artesanal.

No tocante as escravas mulheres, a lei islâmica limitava o número de esposas a um homem islamizado, o qual poderia ter até quatro cônjuges, contanto que pudesse sustentá-las. Neste contexto, quando optava em não desposar uma mulher, a mesma poderia se tornar sua concubina e, ao ter filhos com seu senhor, tornava-se emancipada. Lovejoy (2002) argumenta que as mulheres e crianças eram preferidas neste processo de escravidão, inclusive, tendo maior chance de serem incorporadas à sociedade através da emancipação, ou então, no caso das mais belas, serem colocadas em haréns. Os meninos, por sua vez, eram treinados para o trabalho domésticos e para compor o serviço militar. Homens e mulheres menos atraentes eram colocados em serviços mais pesados. Portanto, em linhas gerais, pode-se entender que esse modelo de escravidão não era uma instituição auto perpetuadora, pois aqueles que nasciam no cativeiro eram raros e, boa parte dos filhos de escravos era assimilada pela sociedade.  É nesta perspectiva que Lovejoy (2002) complementa estas informações ao explicar que:

“As crianças nascidas de uma família escrava era frequentemente chamadas de netos (ntekolo); e quando um desses ‘netos’ é dado como esposa em troca de um membro do sexo feminino da família, é oferecido com ela um presente para ‘lavar o seu sangue’ (nsukula menga), e assim remover o elemento escravo, para que ela possa ser tratada como uma verdadeira esposa, e não como uma escrava. Os seus filhos pertencerão à família dos seus donos, mas serão chamadas ana akwa Kinkenge – filhos nascidos de uma mulher liberta do clã Kinkenge, e não esi Kinkenge – membro de um clã”. (LOVEJOY, 2002, p. 354)

O contato com a cultura islâmica arrancou de suas raízes maternas milhares de cativos, contudo, esse não foi o principal impacto para o continente africano, e sim, o processo desumanização do negro a partir dos eixos ideológicos e religiosos que acabaram por fundamentar um modelo de escravidão racial. O termo racial deve-se ao fato de eleger um grupo específico para a escravização – o negro africano –, utilizando-se como defesa o princípio de “fiel” e “infiel”, todavia, a esse aparato ideológico foi agregado o preceito do “anátema lançado por Noé contra os filhos de Cam”, segundo o qual, na versão judaica recairia aos descendentes de Canaã e “Kush”, que sugere a escravidão dos “cananitas” pelos israelitas. De acordo com a versão árabe, “a maldição se abate sobre os negros, passando a compreender tanto a cor da pele quanto a escravização, tendo o peso da hereditariedade”, (PACHECO, 2008, p. 23).

Mesmo sob a condição de escravo, havia um julgamento moral sobre esta prática, segundo o qual, o Alcorão prescrevia que a relação entre senhor e escravo deveria ser com generosidade e sem desprezo; o senhor era convidado a não sobrecarregar o escravo, ou mesmo sancionar os castigos penosos, por outro lado, o escravo deveria ser leal. Portanto, utilizando-se de Talib (2010) entende-se que na sociedade islâmica, aqui pensando aquela que adentrou e transitou pelo norte da África, estar na condição ou sob o estado de escravo, permitia desenvolver diferentes níveis de relação com o seu senhor, através das prerrogativas que legitimam a exploração do seu trabalho e de suas potencialidades, específicas de cada dinâmica.

Por fim, pode-se dizer que este ensaio buscou esboçar alguns elementos referentes ao modo como a escravidão teve usos e mecanismos de manutenção eficientes dentro das lógicas em que atuavam, tornando impossível pensar na escravidão de forma única.Afinal, é tão múltipla quanto os ofícios, sujeitos e significados que permeiam na heterogênea teia social, política e cultural que cada processo histórico orquestrou. Sendo assim, a escravidão não deve ser apagada do contexto de nenhuma sociedade, mas sim, relativizada, analisada e interpretada conforme as justificativas díspares que acompanham a sua utilização.

Referências
Jessica Caroline de Oliveira. Licenciada em História pela Universidade Estadual do Paraná, campus União da Vitória; Pós-Graduada em História da África e da Cultura Afrobrasileira pela Universidade Candido Mendes; Mestra em História, Cultura e Identidade pela Universidade Estadual de Ponta Grossa; e Doutoranda em História, Poder e Práticas Sociais pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Professora de História, em Porto União – SC.

ALBUQUERQUE, W. R. de; FRAGA FILHO, W. Uma história do negro no Brasil. Salvador: Centro de Estudos Afro-Orientais; Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2006.
LOVEJOY, P. E. A escravidão na África: uma história de suas transformações. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
MEILLASSOUX, C. Antropologia da escravidão: o ventre de ferro e dinheiro. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1995
PACHECO, C. M. F. Origens e transformação da escravidão na África: como o negro foi transformado em sinônimo de escravo. Curitiba, 2008, p.7.  Disponível em: http://www.diaadiaeducacao.pr.gov.br/portals/pde/arquivos/1399-6.pdf Acesso em: 31 Mai 2014.
TALIB, Y. A diáspora africana na Ásia. In: História geral da África, III: África do século VII ao XI. Brasília: UNESCO, 2010

10 comentários:

  1. Quando a autora afirma que na tradição islâmica, a escravidão era um mecanismo de conversão, cabendo ao senhor de escravo a instrução religiosa. E se tornar islâmico, ou aderir ao islã, não levava automaticamente à emancipação, mas sim, a gradual incorporação à sociedade do seu senhor. Permaneceu uma dúvida, com a conversão era possível que o escravo deixasse sua condição de escravidão para se tornar um homem livre?
    Janete Soares da Costa

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    1. Olá Janete, agradeço pela leitura e participação. Então, pelo que consegui compreender a partir da historiografia consultada, sim, com o tempo a condição de escravizado ia sendo deixada pelo sujeito, afinal, não escravizavam islamizados. Mas, era algo gradual, ou seja, não bastava se converter hoje e automaticamente era um livre, pois aos poucos ia sendo assimilado pela população não escrava. Uma hipótese para justificar esta questão seria o fato de comprovar que sua fé era verdadeira e que realmente adotaria os princípios do islã, o que levaria algum tempo. Outro ponto que fico pensando é o fato de ir concedendo a liberdade conforme o número de novos escravizados, entende? Assim, os ofícios não ficavam sem mão de obra.

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  2. Primeiramente, excelente texto Jéssica.

    Eu tinha um vago conhecimento sobre a escravidão muçulmana e desconhecia totalmente, por exemplo, as prerrogativas que justificavam a escravidão do negro por características fisiológicas como você demonstrou no trabalho. Para mim, por muito tempo, essa seria a grande diferença da escravidão Européia para a Muçulmana: a justificação da escravidão pelas teorias racialistas do século XIX. Sendo assim, como podemos diferenciar esses dois tipos de escravidão, em momentos tão diferentes (a muçulmana e a europeia)? Eu tenho o conhecimento de que há uma diferença (até pelo seu texto) no destino dos africanos escravizados para constituir na base da economia (no caso da europeia) da escravidão praticamente doméstica (no caso muçulmano). Poderíamos elencar mais algumas diferenças?

    Uma outra dúvida é se podemos pensar que o uso destas características fisiológicas, assim como a justificação através do Alcorão (com sua versão sobre a maldição de Cam) não teriam impedido cada vez mais a integração do ex-cativo na sociedade e assim ser um meio de perpetuar a situação de escravo como escravo? (Dificultando dessa forma a integração na sociedade muçulmana a partir da conversão do cativo já que ele ainda seria negro e teria as feições que o coloca como inferior pelas punições aos descendentes de Cam).

    É isto, Obrigado.

    Igor Oliveira de Souza
    Universidade Federal Fluminense (UFF)

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  3. Boa noite Igor, agradeço pelas perguntas. Bem, de início, devo dizer que elas dizem respeito a primeira parte deste texto, isto é, a reflexão acerca da escravidão islâmica aqui delineada integra um texto maior, o qual versava, de forma mais específica, sobre a escravidão doméstica, essencialmente africana, e permitia compreender o quão múltiplo são os usos e justificativas da escravidão. Dito isso, o primeiro ponto que é preciso ressaltar se trata do modelo de escravidão europeia do século XIX, a qual se tratou de UM modelo, e este, não é o mesmo utilizado na própria Europa em outros contextos, visto que, as teorias raciológicas são fruto do século XIX, portanto, outros argumentos foram utilizados para escravizar nos séculos anteriores, como por exemplo, a diferença étnica e religiosa, ora ancorados em princípios econômicos, filosóficos, culturais e/ou políticos, configuravam tipos de escravidão que não podem ser homogeneizados tanto no espaço europeu quanto nas posteriores colônias. Portanto, a questão racial só foi pensada no contexto do oitocentos e, antes deste, não era o critério para escravizar. E isso é algo que gera confusão nos estudos, pois associa-se a ideia de raça, aqui pensada enquanto negra (e, por assim dizer africana), estereotipada pela cor preta, como elemento comum de escravização, mas o fato é que em momentos anteriores, isso não resumia a escravidão. Entende? O livro Trato dos Viventes, do Luis Felipe Alencastro, mostra como a ação dos jesuítas, pautados na ideia de conversão e salvação das almas pagãs, legitimou a escravidão no Brasil, em que justificava-se o trabalho e os castigos como mecanismos para purificar os sujeitos. Logo, a ideia de raça, ou a cor, não eram elementos de justificativa. Lembrando ainda, que são temporalidades diferentes...
    Trazendo novamente o debate para a escravidão islâmica, e respondendo a sua outra pergunta, penso que havia (e ainda há) uma diferença fenotípica grande em relação aos povos africanos, deste modo, talvez isso fosse pensado para alguns casos, mas levando em consideração o grande mercado de cativos, o trânsito e circulação destes sujeitos fazia esse comércio ser dinamizado. Além disso, essa inserção se dava de forma gradual e, libertando o escravo, o senhor/dono acabava se dispensando de algumas atribuições, como sustenta-lo, dar um lugar para viver, roupas e etc. Até porque, as condições do escravo islamizado não eram as mesmas daquele que viveu no Brasil, o qual vivia em uma senzala, ou todo aquele estereotipo que há em relação aos escravizados. A historiografia aponta que alguns escravos tinham condições melhores que camponeses, artesãos e outros trabalhadores livres que, em alguns casos, tinham dificuldade de manter a si, ou sua família.
    Não sei se consegui atender todas as suas questões, mas, caso as duas primeiras tenham ficado vagas, me coloco à disposição de dar novos exemplos. Novamente agradeço pela participação. Abraços.

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  4. Oi Jéssica. Parabéns pelo texto. A escravidão é um processo de ruptura com a dignidade humana, não pode realmente ser justificada em qualquer situação, apesar das tentativas (sic)! Quais as fontes primárias que permitiram os seus autores (fontes) chegarem a esse diagnóstico? Obrigado! Abraço!

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    1. Boa noite Maicon, grata pela participação e questionamento.
      Bem, a ideia do texto não é defender ou não a escravidão. Mas, desde a escola, sempre me chamou a atenção o que levava a escravizar e como ou por que haviam sujeitos que não fugiam, ou de alguma forma acabavam se permitindo ficar sob a condição de escravizado. Desde modo, tanto este ensaio quanto demais produções que realizei para pensar estes (e outros) elementos, partem justamente da ideia de tentar entender quais mecanismos operavam para manter o funcionamento desta estrutura. É evidente que, pelo olhar de hoje, nossas percepções são diferenciadas daquelas de quem escravizava. Dito isto, este ensaio se pautou muito mais em discussões bibliográficas e articulações com o próprio alcorão. Abraços.

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  5. Muito bom seu ensaio Jessica, resumindo, entre os povos antigos o uso da mão de obra escrava era normal, principalmente em atividades domesticas.Mas mesmo se convertendo ao Islã o escravo do seculo XV ao XVIII não era poupado principalmente se este fosse negro.A literatura como você mesmo explicitou em seu texto deixava bem clara essa condição, principalmente por conta de um modelo de beleza pré estabelecido.Minha pergunta é: Houve realmente essa integração do escravo a sociedade muçulmana ou entende-se que seus pecados foram perdoados e que sua condição servil duraria até o final de suas vidas?

    Agradecida.

    Luciana dos Reis de Santana

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    1. Boa noite, Luciana. Obrigada pela pergunta e participação. A partir das pesquisas que realizei, observei que essa condição de escravizado poderia ser gradualmente sendo dissolvida, conforme a adoção e práticas do islã. Mas, esse gradual poderia levar anos. E, essa interação na sociedade, poderia significar não sua permanência no seio da sociedade que o escravizou, e sim, a possibilidade de retorno para sua comunidade/sociedade de origem, ainda que enquanto islamizado. Então, existiam várias possibilidades, sendo uma delas, continuar a viver enquanto camponês, artesão, militar, entre outras funções enquanto livre, como também, o regresso ou mudança para outros espaços. Espero ter respondido seu questionamento. Abraços

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  6. Boa tarde, Jéssica. Primeiramente, parabéns pelo ensaio.
    Bom, ao ler seu ensaio, não pude deixar de notar a semelhança entre a escravidão no mundo islâmico e a escravidão no mundo cristão ocorrida posteriormente a partir do século XV. Diversos elementos comprovam essa semelhança, como a justificativa religiosa, pautada na maldição de Cam e no processo de conversão para a salvação do cativo. Gostaria de saber se nos seus estudos há indícios da influência desse modelo de escravidão exercido pelos mulçumaos para o modelo de escravidão praticado pelos europeus na América após 1500.

    Obrigada,

    Camila Chueire Caldas

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    1. Boa noite, Camila. Grata pela pergunta e pela participação.
      Tenho uma outra parte da pesquisa que versa especificadamente sobre as justificativas da escravidão na cultura ocidental, a qual se dava de forma bem mais múltipla, contudo, não me recordo de observar elementos da escravidão islâmica em si enquanto influência. Mas sim, a religião católica, pautada em três maldições bíblicas ao povos africanos, aliada ao fato de que parte dos mesmos era politeístas, utilizaram a religião como uma das suas maiores justificativas para manter a escravidão, combater o paganismo e expandir a fé católica. Um ponto que pode ser complementado é que mesmo os muçulmanos foram escravizados pelos europeus e vice-versa, em ambos os casos utilizando sua religião e a ideia de "captura em guerra" para manter seu sistema de escravização. Cada qual, dentro da sua cosmogonia.

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