Márcio dos Santos Rodrigues

QUADRINHOS COMO FONTE PARA A HISTÓRIA DO ORIENTE MÉDIO

Introdução
Dentre os testemunhos e evidências históricas que nos dizem algo sobre o Oriente Médio figuram as histórias em quadrinhos (também conhecidas tão-somente pela sigla HQs). A relação delas com o Oriente Médio já foi e tem sido motivo de interesse, mesmo que tímido, no âmbito da pesquisa acadêmica sobre quadrinhos. Figuram como um lugar comum análise de obras como “Palestina - Uma Nação Ocupada” – originalmente lançado pela Fantagraphics em 1996 - e “Notas sobre Gaza”, publicada em 2009 e versando sobre incidentes durante a Crise de Suez (ambas de autoria do autor maltês Joe Sacco, um dos nomes mais representativos do jornalismo em quadrinhos) e as da quadrinista iraniana Marjane Satrapi (“Persépolis” ou então, com menos frequência, a obra “Frango com ameixas”; obras focadas particularmente na construção de uma memória da autora e de sua própria família). No que se refere ao trato desses quadrinhos como objeto do conhecimento histórico quase sempre eles foram indagados como mero reflexo de uma suposta realidade, de uma forma um tanto ilustrativa, e pouco abordados como uma prática que se valendo de repertórios que circulam socialmente constroem sentidos e interpretações para aquela realidade que se pretende examinar. Ao transitarem pelo mundo histórico configurado pelos quadrinhos é comum pesquisadores selecionarem ainda aquelas fontes que consideram como mais próximas do real e orientarem seus exames históricos pela busca de reflexos, onde o contexto estaria supostamente mais evidente, e desconsideraram a historicidade ou os diálogos estabelecidos, por exemplo, de fontes ficcionais com o contexto. Não há necessidade de estabelecimento de hierarquias que considerariam como históricas aquelas produções que “enquadram o real”. Fontes que se apresentam como ficcionais e fazem uso de representações e do imaginário são igualmente históricas. No que tange ao panorama de pesquisas no Brasil, a dificuldade ou mesmo pouca afinidade em lidar com quadrinhos ficcionais no campo da história está relacionada ao apego que historiadores têm ainda pelos referenciais pensados no âmbito dos estudos da Comunicação Social – sobretudo, os desenvolvidos no âmbito da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), que consideram os quadrinhos como meio, mero suporte de ideias, ou se colocam demasiadamente presos aos ídolos de origem e defesa ou invenção de pioneirismos. Seria necessário então pensar em instrumentais que extrapolem os aspectos formal, comunicacional e estético e que tratem esses elementos nas temporalidades que pertencem.

Postas as considerações acima, o texto aqui proposto procura apresentar fontes de pesquisa para historiadores – orientalistas ou não –, por meio de um levantamento de obras de autores do meio dos quadrinhos que julgo serem importantes para se pensar a relação entre quadrinhos e Oriente Médio. Devido ao alcance transnacional das produções que elenco abaixo, faz-se necessário refletir de que modo tais fontes podem ser úteis para um enfoque histórico sobre a região inventada pelo Ocidente e que classificamos como Oriente Médio.

Possíveis fontes, fontes possíveis 
As primeiras obras que indicaríamos como significativas em torno de visões sobre o Oriente Médio são narrativas biográficas de autores de quadrinhos procedentes dos países que compõem a região. Em “O Árabe do Futuro”, Riad Sattouf constrói uma narrativa autobiográfica sobre sua infância no Oriente Médio. Sattouf, filho de mãe francesa e pai sírio, foi criado no Oriente Médio até os dez anos e na série, que aqui no Brasil foi publicada em três volumes pela Intrínseca, apresenta um testemunho sobre a atmosfera política da Síria sob o regime de Hafez al-Assad.


Figura 1: Ilustração de O Árabe do Futuro, de Riad Sattouf, enfatizado o clima político que pairava sobre a família do autor e sobre sua infância. Disponível em http://www.intrinseca.com.br/blog/wp-content/uploads/2015/02/Ilustra%C3%A7%C3%A3o_Arabe-do-futuro.jpg. Acesso: 03/09/2018.

Outra narrativa de caráter autobiográfico que pode ser útil para se pensar as relações política, religião e histórias em quadrinhos, além de poder ser entrecruzada com a obra comentada anteriormente, é “Bye Bye Babylon: Beirut 1975–1979” de Lamia Ziadé, lançada em 2012. A autora trata na obra de sua infância em Beirute nos anos 1970, onde representa (ou torna presente pelas imagens que constrói) o ambiente político do Líbano em meio a uma guerra civil. Atentados e conflitos armados entre diferentes grupos religiosos se tornaram parte das memórias da autora e servem de base para a construção visual da obra, que mais se aproxima de um sketchbook do que propriamente uma narrativa convencional de quadrinhos.

Expressiva também para o estudo da relação do Ocidente e Oriente Médio é a HQ “Pride of Baghdad” (no Brasil, “Os Leões de Bagdá”). Escrita pelo norte-americano Brian K. Vaughn e desenhada por Niko Henrichon, a HQ publicada em 2008 sobre o selo Vertigo da DC Comics faz uso de um acontecimento ocorrido durante a invasão norte-americana no Iraque, em 2003, para construir uma fabula política por meio de figurações simbólicas e da narrativa visual dos quadrinhos.


Figura 2: Cena da invasão norte-americana ao Iraque a partir da perspectiva de um leão do Zoologico de Bagdá, personagem do quadrinho roteirizado por Brian K. Vaughn . Disponível em http://leviathyn.com/wp-content/uploads/2013/08/Pride-of-Baghdad-1.png. Acesso em: 03/09/2018.


Durante a invasão a coalizão liderada pelos norte-americanos bombardeou o zoológico de Bagdá e, durante o episódio, todos os animais fugiram. Quatro leões que eram, por assim dizer, o orgulho do zoológico ao investirem contra os soldados foram abatidos. Interessante notar que a palavra “pride” significa em português “orgulho” e corresponde ao coletivo de leões, algo que sem correspondência em nossa língua. O zoológico de Bagdá era o maior do Oriente Médio, em diversidade de animais, e era orgulho dos iraquianos (conforme “Saving the Baghdad Zoo: A True Story of Hope and Heroes”, de Kelly Milner Halls e ‎William Sumner, de 2009). Sua destruição simbolicamente representa o fim de uma civilização e do orgulho iraquiano. Esse evento serviu de base para uma narrativa sobre a guerra e as suas consequências: uma fabula moral sobre a guerra e suas consequências. Algumas páginas foram dedicadas ao trabalho de Vaughan em “War Stories: A Graphic History”, de Mike Conroy (2009. p.62). O mesmo roteirista Brian K. Vaughn considerou um episódio traumático das relações com o Oriente Médio, os ataques atribuídos à Al-Qaeda em 11 de setembro de 2001 em pleno território norte-americano, para construir a trama de “Ex Machina”. Publicada entre 2004 e 2010 pela Wildstorm, selo editorial norte-americano que depois seria incorporado à linha Vertigo da DC Comics, “Ex Machina” tem como protagonista o personagem Mitchell Hundred, um ex-super-herói que, sob o pseudônimo “A Grande Máquina”, salvou uma das torres de ser atingida pelo avião sequestrado por agentes da Al-Qaeda. Após o feito, Hundred revela sua identidade e logo em seguida se candidata ao cargo de prefeito de Nova York.

A memória em torno do 11 de setembro de 2001 é uma presença também no número dedicado ao ex-presidente George W. Bush, na linha editorial “Political Power”, da Blue Water Comics. Trata-se de um quadrinho biográfico produzido no âmbito de uma editora especializada em produções em torno da história de vida de personagens de destaque na sociedade norte-americana. Nesse mesmo número, publicado em dezembro de 2006, aparecem visualmente representadas a Al-Qaeda e a figura do governante iraquiano Saddam Hussein. Este último foi tema de duas edições de “Dictators of the Twentieth Century”, de Ted S. Nomura e publicados pela Antarctic Press, em 2004: “The rising” e “The Fall”. Ambas concentram na trajetória do governante iraquiano desde 1979 a 9 de abril de 2003 - conforme Fredrik Strömberg, em seu “Comic Art Propaganda: A Graphic History” (2010, p.55).
“Holy Terror” é outra obra ficcional que merece destaque dentro da temática. Trata-se de uma graphic novel desenhada e escrita pelo norte-americano Frank Miller que orienta a narrativa de modo a apresentar o inimigo potencial dos Estados Unidos como o fundamentalismo islâmico.


Figura 3: Capa de Holy Terror, de Frank Miller. O protagonista Fixer socando o inimigo muçulmano, “o outro” (MILLER, Frank. Holy Terror. Burbank, CA: Legendary Comics, 2011). Disponível em http://legacy.fanboyplanet.com/comics/images/HolyTerror_CvrRgh01.jpg. Acesso: 05/09/2018.

A obra busca não apenas entreter o público, mas convencê-lo a tomar partido da luta contra o terror. A “graphic novel” foi lançada em 2011, dez anos após os ataques de 11 de setembro de 2001 contra os Estados Unidos. O discurso construído por essa história em quadrinhos é focado sobre o terrorismo e seus agentes, ou seja, “o outro” a ser combatido e eliminado. Antes mesmo da publicação de “Holy Terror”, Miller enveredou pela temática das relações entre Ocidente e Oriente através da obra “300”, obra publicada em 1998 e aqui publicada pela primeira vez com o título “300 de Esparta”. É um trabalho que serve igualmente para a discussão em torno da noção de orientalismo, desenvolvida por Edward Said. Em “300”, os protagonistas são espartanos que se colocam contra o avanço persa. A Batalha de Termópilas, durante as Segundas Guerras Médicas, é ressignificada em um contexto de tensões entre Ocidente e Oriente Médio (aspecto que pode ser visto de forma mais exacerbada na transposição de “300” para o cinema). A ideia de oriente pensada por Miller está ligada com a idolatria e com a escravidão, antítese do que se pensaria a respeito do ocidente, ou melhor, dos Estados Unidos (como é possível depreender nas entrelinhas). Tais histórias em quadrinhos participam das maneiras pelas quais o oriental é classificado e esteticamente apresentado como o inimigo. Sugeriria ao eventual interessado pelas obras do autor norte-americano em problematizar os discursos acerca das características do terrorismo e de seus agentes, ou seja, como estes são fabricados na e pela linguagem das histórias em quadrinhos, além de perceber a relação dessas produções com as temáticas do mundo islâmico contemporâneo e sua relação com a política interna e externa estadunidense. Quadrinhos como “Holy Terror” e “300” se alimentam dos mais variados discursos, oficiais ou do senso comum. Tais discursos são apresentados em forma de representação, que passam longe de ser um reflexo, um ponto de vista único a respeito do social. Em “Holy Terror”, o “terrorista” é aquele que não comunga da doutrina política norte-americana e aparece representado como uma figura do Oriente Médio. Outras produções estadunidenses abordaram anteriormente a questão do terrorismo e podem ser incluídas de modo a perceber diferentes subjetividades, assim como permanências e mudanças no modo como representam o “outro” a ser combatido. Quadrinhos dos anos 2000 como os do Capitão América trouxeram pautas de segurança contra o terror no âmbito da sociedade norte-americana (o personagem com as cores da bandeira norte-americana nesse período de Guerra ao Terror foi objeto de estudo pelo historiador Rodrigo Aparecido de Araujo Pedroso em seu “Vestindo ainda mais a bandeira dos EUA: o Capitão América pós-atentados de 11 de setembro”).

Outra série que merece estudos mais aprofundados é “The 99” (الـ ٩٩ al 99, no original), publicada pelo selo kuwaitiano Teshkeel Comics, temos um grupo de personagens super-heróicos cujos poderes foram inspirados nos 99 atributos de Alá apresentados no Alcorão e na tradição islâmica.


Figura 4: Os 99. Disponível em: https://static.independent.co.uk/s3fs-public/thumbnails/image/2015/03/11/19/235-Islam-Comic-1.jpg?w968. Acesso: 03/09/2018.

Os poderes de cada personagem provêm de gemas preciosas, forjadas da destruição da antiga Bagdá. A série é publicada em diferentes línguas, não apenas em árabe. Há versões em inglês dessa produção, inclusive com circulação dentro dos Estados Unidos. Além do mercado do Oriente Médio e do norte-americano, “The 99” circula em países como a China e a Índia, onde grupos muçulmanos se fazem presentes. Em 2010 o então presidente norte-americano Barack Obama, assumidamente um leitor voraz de histórias em quadrinhos, teceu elogios a “The 99”, assinalando a maneira como o criador da série, o psicólogo kuwaitiano Naif al-Mutawa, tratava de temas como a tolerância religiosa em um contexto marcado pela islamofobia. Obama, na ocasião, apontou a importância desses super-heróis pela forma como incorporavam os ensinamentos e a tolerância do Islã, conforme passagem do capítulo “Truth, Justice, and the Islamic Way”: Conceiving the Cosmopolitan Muslim Superhero in The 99, de Stefan Meier, publicado em “Transnational Perspectives on Graphic Narratives: Comics at the Crossroads” (2015, p.181). Os elogios de Obama aos personagens foram também discutidos no capítulo de Rachel Mizsei-Ward, “Fighting for Truth, Justice, and the Islamic Way. The 99, Global Superheroes for the Post-9/11 World” que integra o livro “Superheroes on World Screens” (2015. p). É possível compreender essa série como uma tentativa não apenas de tratar de aspectos da religião muçulmana, mas de buscar convencer leitores não-árabes sobre os estereótipos e ideias falsas sobre o Islã. Nem todos os 99 super-heróis do universo criado por Naif al-Mutawa são islamitas, mas encarnam de algum modo as virtudes de Alá, expressando na intenção do autor uma universalidade de princípios muçulmanos.

Considerações finais 
Em virtude do espaço disponível obras importantes não poderão ser comentadas. Fica aqui a indicação de trabalhos como “Os Melhores Inimigos - Uma História Das Relações entre os Estados Unidos e o Oriente Médio, de David B. & Jean-Pierre Filiu (digna de nota pelo uso de metáforas e alegorias visuais construídas pelos autores para apresentar os sentidos históricos das relações contraditórias entre o Ocidente, representado pelos EUA, e o Oriente), “O Mundo de Aisha: A revolução silenciosa das mulheres no Iêmen” (expressiva pela forma como discute sobre dramas de mulheres e o lugar simbólico ocupado por elas em uma cultura islâmica), “How to Understand Israel in 60 Days or Less” e Rolling Blackouts: Dispatches from Turkey, Syria, and Iraq (ambas da cartunista norte-americana Sarah Glidden). Ao leitor do presente texto que queira dialogar ao longo deste simpósio fica aberto o espaço para o debate. Nestas notas em torno de fontes possíveis para um trabalho de reflexão sobre o Oriente Médio pensado, presentificado e inventado nos quadrinhos procurou discorrer sobre fontes de pesquisa nem sempre contempladas. Trata-se de um levantamento parcial de um universo amplo e ainda pouco explorado.

Referências 
Márcio dos Santos Rodrigues é doutorando em História pela Universidade Federal de Pará (UFPA), na linha de pesquisa Arte, Cultura, Religião e Linguagens/Bolsista Capes. Professor Substituto do Curso de Licenciatura Interdisciplinar em Estudos Africanos e Afro-Brasileiros da Universidade Federal do Maranhão, Mestre em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), na linha de pesquisa 'História e Culturas Políticas' (2011). Licenciado em História pela mesma instituição federal (2007). Pesquisador de Histórias em quadrinhos como fonte para a Pesquisa e o Ensino de História. E-mail: marcio.strodrigues@gmail.com

CONROY, Mike. War Stories: A Graphic History. New York: HarperDesign, 2009.
DENISON, Rayna; MIZSEI-WARD, Rachel. Jackson. Superheroes on World Screens. University Press of Mississippi, 2015.
HALLS, Kelly Milner; SUMNER, Major William. Saving the Baghdad Zoo: A True Story of Hope and Heroes. New York: Greenwillow, 2010.
MEIER, Stefan. “Truth, Justice, and the Islamic Way”: Conceiving the Cosmopolitan Muslim Superhero in The 99. In: DENSON, Shane; MEYER, Christina; STEIN, Daniel. Transnational Perspectives on Graphic Narratives: Comics at the Crossroads. London: Bloomsbury, 2013. p.181-196.
MILLER, Frank. Holy Terror. Burbank, CA: Legendary Comics, 2011.
MILLER, Frank; VARLEY, Llyn. 300. São Paulo: Devir, 2006.
PEDROSO, Rodrigo Aparecido de Araújo. Vestindo ainda mais a bandeira dos EUA:  O Capitão América pós-atentados de 11 de setembro. Jundiaí: Paco Editorial. 2016.
SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Traduzido por Rosaura Eichenberg.  São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
STROMBERG, Fredrik. Comic Art Propaganda: A graphic History. New York: St. Martin's Griffin, 2010.
VAUGHN, Brian K.; HENRICHON, Niko. Pride of Baghdad. New York, USA: Vertigo/ DC Comics, 2008.
ZIADÉ, Lamia. Bye Bye Babylon: Beirut 1975-1979. Northampton, MA: Interlink graphic, 2012.

46 comentários:

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  2. Eu adoro trazer para a sala de aula novos recursos, utilizo muitos animes, filmes, mas sempre que me deparo com a HQ fico muito apreensiva da forma de aplicar, poderia me dar algumas dicas para trabalhar com ensino médio?

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    2. Debora, boa tarde e obrigado pela pergunta: Uma recomendação que daria para quem deseja trabalhar com ensino médio ou em qualquer âmbito é ter em vista os materiais mais adequados ao tema que se deseja trabalhar em sala de aula. Isso faz com que se busque ter um conhecimento mais aprofundado e mais cuidadoso do que se deve utilizar.

      Além disso, o professor tem que considerar o nível de formação dos educandos e educandas, bem com a relação que eles estabelecem com os quadrinhos. É preciso também ter conhecimento a respeito da linguagem dos quadrinhos, não apenas no critério formal. É preciso saber contextualizar a lingugem deles e os próprios quadrinhos. Embora os quadrinhos sejam disseminados socialmente nem sempre eles se tornam compreendidos ou compreensíveis. Autores como Thierry Groensteen já qualificaram os quadrinhos como um objeto cultural não-identificado.
      Se for trabalhar quadrinhos no campo da história é interessante que se fuja de um uso ilustrativo deles. Geralmente o que percebo é que os quadrinhos acabam sendo usados para corroborar com pontos de vista que já estão prontos, na busca de reflexos (há uma tradição intelectual que acabou inclusive indo nesse ponto e matando possibilidades de um uso mais aprofundado dos quadrinhos).
      Espero ter contribuído e podemos conversar mais.

      Atenciosamente,

      Márcio dos Santos Rodrigues

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    3. Obrigado pelo esclarecimento Márcio.
      Atenciosamente
      Débora Dorneles Uchaski

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  4. Olá,
    No seu texto, você diz que a HQ 300 de Frank Miller "É um trabalho que serve igualmente para a discussão em torno da noção de orientalismo, desenvolvida por Edward Said". Isto posto, quais os principais elementos e características da HQ que se relacionam com a noção de Orientalismo de Said?
    Parabéns pelo texto!!
    Dalgomir Fragoso Siqueira

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    2. Olá, Dalgomir.

      Primeiramente, obrigado pela pergunta.
      Em 300 Miller apresenta em termos narrativos e figurativos um mundo ocidental em oposição ao oriente. O primeiro é representado pelos espartanos e o segundo mundo pelos persas. O mundo dos persas é o do exotismo, da luxúria e da idolatria, contraposto ao dos gregos, que seria caracterizado pela democracia, civismo e um senso patriótico. A luxúria e idolatria são encarnadas na figura de Xerxes e no modo como ele é apresentado ao personagem Leônidas. Há, deste modo, uma construção dos persas como figuras negativas, dentro de processos de estereotipia que são descritos e denunciados por autores como Edward Said. No filme 300 essas representações do "outro" como demonizados são mais evidentes. Não sei se você se lembra da cena em que aparece um persa com cabeça de bode. Isso particularmente não aparece na HQ e no filme temos um reforço. Voltando ao quadrinho: a obra diz mais respeito ao momento em que o autor a concebeu e a publicou do que propriamente sobre um episódio do mundo antigo. Miller está falando ali dos Estados Unidos e das relações que estes estabelecem com o mundo particularmente muçulmano. Ai ele emprega uma carga depreciativa. Frank Miller anos depois produziu uma obra chamada Holy Terror, que aponto no texto, e nela “o outro” deve ser igualmente combatido e eliminado.
      Obrigado

      Márcio dos Santos Rodrigues

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  5. Márcio, olá. O uso dos HQ em sala de aula é um recurso que aproxima o conteúdo ao jovem estudante. Vivenciei algumas experiências onde num primeiro momento foi interpretado como "passar o tempo" logo deu espaço a ótimas narrativas. Parabéns pelo trabalho.

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    1. Joseane, olá. Obrigado por suas considerações. Os quadrinhos servem tanto aos jovens estudantes quanto aos educadores e educandos em idade mais adulta. É sempre necessário que se tenha algumas preocupações para que eles sejam empregados adequadamente em sala de aula. Essa preocupação é algo que está sendo construído no campo da História, com referenciais específicos do campo da História e em diálogo com outras áreas do conhecimento.

      Obrigado

      Márcio dos Santos Rodrigues

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  6. Olá, Márcio!
    Nas salas de aula se sente a “urgência” de propostas inovadoras para o ensino-aprendizagem. As histórias em quadrinhos pensadas como “objeto de conhecimento histórico”, é algo fascinante. Então, pergunto: Como conseguir envolver os responsáveis pelo ensino-aprendizagem nessas “novas linguagens de ensino”? Como poderíamos empolgar os professores a se valerem das HQs como algo inovador nas salas de aula?
    Obrigada e parabéns pelo texto.
    Celiana Maria da Silva.

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    1. Há ainda um certo preconceito com relação aos quadrinhos no meio escolar, o que impede que educadores e educandos possam ter contato com essa "nova forma de linguagem". Esse preconceito tem diminuído, mas ainda persiste pelo entendimento equivocado de que os quadrinhos são exclusivamente destinados ao entretenimento. Mesmo que fossem apenas diversão podem e devem ser estudados e utilizados no ensino. Para empolgar professores é necessário que se pensa nas bases de validação dos quadrinhos como objeto do conhecimento, não em uma ênfase meramente elogiosa, mas através da percepção deles como um objeto que está no mundo social e diz respeito do mundo social.

      Atenciosamente,

      Márcio dos Santos Rodrigues

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  7. Olá, professor Márcio. Tudo bem? Quero parabeniza-lo por trazer um tema tão relevante para o ensino de história e para as nossas praticas pedagógicas. Acredito que os quadrinhos é uma forma bastante dinâmica e com uma linguagem mais atrativa e que pode casar muito bem com determinados assuntos. Agora, gostaria que o senhor pontuasse/explanasse um pouco mais a respeito de algumas fontes - que o sr julga importante - para compreensão dos processos históricos do antigo oriente e gostaria de saber se o senhor conhece alguma fonte que aborde algo mais teórico a respeito de como nós ocidentais inventamos o oriente - da mesma forma que nos inventamos.
    Thalles Henrique Batista dos Santos

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    1. Tudo bem, Thalles. Com relação aos processos históricos do antigo oriente, representados pela narrativa dos quadrinhos, mencionaria aqui a série "Les Aventures d’Alix", de Jacques Martin. Nela vemos representações do Oriente Antigos por meio das aventuras de personagem que percorre a paisagem cultural e histórica das civilizações do mundo antigo - alguns números enfatizam as civilizações do Oriente Antigo (como "Le sphinx d'or", "Le Prince du Nil", "La Tour de Babel"). Essa série tem alguns volumes publicados no português de Portugal.

      Com relação às fontes você se refere aos quadrinhos ou a uma obra teórica mais específica? Se for sobre obra há alguns estudos que pensam sobre orientalismo e auto-orientalismo (Self-Orientalism, no inglês). De obra em quadrinho que pensa sobre essa construção em torno da forma como pensamos em termos ocidentais o Oriente posso mencionar "Habibi" de Craig Thompson ou o "American Born Chinese" (aqui no Brasil foi traduzido como "O Chinês Americano"), de Gene Luen Yang. A primeira emprega até o orientalismo buscando subvertê-lo e de modo a construir uma perspectiva positiva para o mundo do oriente. Já a segunda produz uma desconstrução sobre estereótipos a respeito do chinês e do oriente.

      Agradeço novamente pela pergunta.
      Márcio dos Santos Rodrigues

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  8. Oi Márcio. Parabéns pelo texto. A HQ por si só não abarca do aporte de fontes para o diálogo em sala de aula, visto que ela possui um limite em si mesma para dialogarmos com o corpo estudantil sobre assuntos tão complexos como, por exemplo, Oriente Médio. Pensar uma obra pronta é muito interessante, mas você não considera ainda mais produtivo os próprios estudantes produzirem suas HQs, a partir das pesquisas realizadas? Obrigado! Abraço!

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    1. Obrigado pela pergunta. Considero igualmente produtivo que os alunos produzam quadrinhos a partir das pesquisas e do conhecimento histórico. Todavia, isso é uma outra operação ou atividade. É uma operação que vai demandar um maior trato com a construção de um roteiro, uma maior ênfase na narrativa e nas imagens a serem empregadas dentro da história. Isso é inclusive a atividade mais realizada com relação aos usos dos quadrinhos em sala de aula, conforme tenho acompanhado. Já o entendimento de quadrinhos "prontos" não é tão usual, empregado (nem na pesquisa e nem em sala de aula), pois demanda tanto dos alunos quanto dos professores uma erudição, uma maior familiaridade com obras e autores.
      Obrigado! Márcio dos Santos Rodrigues

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  9. Boa-noite,Márcio!
    Estou maravilhada com o seu sugestivo texto-metodológico! Realmente,não é fácil trabalhar a Antiguidade Oriental só com o livro didático. Sua sugestão das HQs faz nós educadores trabalharmos a intertextualidade,a interdisciplinaridade com Português,Artes,História,Geografia,etc.Eu já trabalho as HQs com temáticas da história brasileira.Os resultados são precisos. Acredito que este novo suporte ajudará nas turmas dos 6º s anos e dinamizará o conhecimento do "Desconhecido Oriente Médio". Obrigada pela dinâmica proposta histórica de trabalho!
    Ivanize S.S. Nascimento

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    1. Ivanize, creio que o aspecto teórico-metodológico é o mais essencial para análise de quadrinhos. Muitos pesquisadores inclusive fogem desse aspecto e se rendem a um positivismo, a uma postura meramente factualista e sem preocupação com questões epistemológicas. No campo do ensino de História é ainda preciso pensar nos quadrinhos como algo meramente ilustrativo. Eles têm ser pensados como uma manifestação de um tempo, como uma forma de se pronunciar sobre o tempo. Meu texto foi pensado com a preocupação também de contribuir no debate acadêmico sobre quadrinhos, como uma forma de sanar um desconforto e produzir inclusive uma crítica ao modo como essas fontes são empregadas. O que percebo quase sempre em pesquisas é que não há mesmo uma perspectiva interdisciplinar. Os quadrinhos quase sempre são utilizados para corroborar com pontos de vista que se tem de antemão sobre qualquer assunto. Fico imensamente feliz que você tenha preocupação em articular diferentes áreas do conhecimento.

      Obrigado novamente,

      Márcio dos Santos Rodrigues

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  10. Olá Márcio. Seu ensaio está com um tema maravilhoso, que agora está com bastante ênfase e trabalhado não somente na sala de aula, como também sendo utilizado por vários estudantes do curso de História, como uma fonte a ser trabalhada pelo professor/aluno, em teses para um melhor aperfeiçoamento no assunto, História em Quadrinhos.Visto que nesse contexto, o aluno conseguirá ter melhor atenção nas aulas ministradas pelos professores na sala de aula. Parabéns!!

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    1. Olá Valéria, bom dia. No campo da pesquisa histórica o uso de quadrinhos tem se tornado cada vez mesmo mais recorrente - algo que pode ser visto no número de trabalhos de conclusão de curso, dissertações, teses e artigos. Historiadores de ofício têm buscado construir instrumentais mais adequados para o uso delas tanto no ensino quanto na pesquisa.
      Obrigado

      Márcio dos Santos Rodrigues

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  11. Boa noite Márcio.
    Parabéns pelo o belo trabalho, gostaria apenas de dizer que os HQS, é um excelente recurso didático para desmistificarmos os estereótipos, que ao longo da história foram criados em desfavor aos povos orientais.

    Damiana Santana de Medeiros

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    1. Obrigado pelos parabéns e pelas considerações. Além de desmistificar, é necessário compreender em termos históricos como são construídos, qual é a base dessas construções e como se processam no tempo e no espaço.
      Márcio dos Santos Rodrigues

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  12. Bom dia professor Márcio. Gosto muito desta didática da utilização dos uso dos quadrinhos. Uma questão a se levantar é a modulaçãos dos quadrinhos conforme a necessidade midiática nas questões políticas. Produzido nas esfera norte-americana o Homem de Ferro tem sua origem na década de 60 no combate ao Vietnã. Na atual adaptação para o cinema o personagem nasce no Afeganistão. Assim como citado no seu texto a produção dos "300" o quadrinho para o cinema, adequar o original às circunstâncias atuais é válido? Não é importante também trabalhar a questão do direito autoral? Parabéns pelo trabalho e incentivo. Juliana Havrechak

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    1. Boa tarde, Juliana. Obrigado pelas considerações e pela boa pergunta.
      A adaptação cinematográfica do personagem Homem de Ferro, que é inclusive a primeira produção independente do Marvel Studios, desconsiderou origem ambientada durante a Guerra do Vietnã para situar o personagem em um contexto mais atual, do tempo presente daquele ano, o de 2008, e deste modo explorou questões políticas que o expectador/consumidor tinha maior familiaridade. Talvez o público-alvo não estive tão mais familiarizado com o contexto do Vietnã e trata-se de uma produção destinada a um mercado mais amplo. Esse aspecto já foi tratado inclusive em obras sobre quadrinhos como "War, Politics and Superheroes: Ethics and Propaganda in Comics and Film", de Marc DiPaolo. Nesse livro há considerações interessantes sobre as escolhas apresentadas na produção cinematográfica. No livro "Iron Man and Philosophy: Facing the Stark Reality" há também discussões em torno da escolha do cenário do Afeganistão, da mesma forma que em "Inventing Iron Man: The Possibility of a Human Machine". No caso de "300", creio, com base em elementos históricos, que não seria propriamente uma adequação aos tempos ou circunstâncias atuais, mas uma linha de continuidade entre a produção quadrinística e a fílmica. Há um diálogo ali, a despeito da transposição ou tradução intersemiótica. O Frank Miller participou inclusive do processo de construção do filme que surgiu da HQ concebida por ele e a islamofobia dele, que já aparecia em 300, acabou sendo reforçada naquela produção de 2007. Tempos depois pelo selo Legendary, derivado da produtora do filme, ele lançou o Holy Terror.
      Sobre a questão dos direitos autorais: Sim, é um elemento não negligenciável de toda e qualquer análise sobre quadrinhos. O que lemos é sempre produção intelectual e de direitos de alguém dentro de um certo período ou dentro de certas condições. Elas também definirão em certo grau o que pode ser transposto para o cinema. Não sei se você já viu Man of Steel, do mesmo diretor de 300. Durante o período de produção e exibição havia uma disputa pelos direitos em torno da origem do Superman, movida justamente pela família dos criadores. o que acabou influenciando muito na forma como o personagem ganha os poderes ou mesmo nas omissões que o filme faz de alguns aspectos do Superman.
      Obrigado
      Márcio dos Santos Rodrigues

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  14. Olá Márcio, primeiramente muito obrigado pelo texto. Bem, quando você fala sobre: “a dificuldade ou mesmo pouca afinidade em lidar com quadrinhos ficcionais no campo da história” ao citar o panorama das pesquisas do Brasil no que tange a fontes ficcionais me fez lembrar automaticamente que esse é um tipo de material que jamais vi durante os anos de graduação na universidade, sempre nos prendemos muito aos documentos oficiais e etc. e nunca havia passado pela minha cabeça sobre o seu potencial da forma como você mostra, você diria que essa é uma especificidade tipicamente brasileira?

    Denis Garcez de Oliveira

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    1. Olá, Denis. Boa tarde.

      Não creio que seja uma especificidade tipicamente brasileira. Quando apresento o argumento é particularmente para expressar um descontentamento meu com a forma como se pensam os quadrinhos na História e como se opta pelo "trabalho mais fácil", de mera checagem de fatos nos quadrinhos. Deste modo, as fontes que julgamos mais ficcionais nem são percebidas como "históricas". Há historicidade em toda ficção, não é?

      As histórias em quadrinhos expressam modos de representar experiências no tempo que historiadores e não historiadores, por diversos motivos, não estão familiarizados. De um lado, temos historiadores de formação que, por diferentes motivos, desconhecem ou desconsideram os quadrinhos como objeto. De outro, estudiosos de outros campos que desconhecem ou mesmo desconsideram especificidades do método histórico. Afinal, podem compartilhar a percepção de que o ofício do historiador e a escrita da história se resumem tão-somente ao registro de fatos do passado e baseados em documentos oficiais. Grande parte das análises históricas com HQs ainda incorrem no equívoco de verificar se os argumentos apresentados condizem ou não com a historiografia, em um esforço sem sentido de checagem ou de estabelecer hierarquias entre ficção e realidade. Isso seria o mesmo que buscar os chamados “reflexos do real”.

      Tal concepção de História como exame de reflexos de uma realidade passada, é esboçada, por exemplo, em uma coletânea dos pesquisadores da comunicação da USP, Enquadrando o Real - Ensaios Sobre Quadrinhos (Auto)Biográficos, Históricos e Jornalísticos (2016) A obra cumpre até uma função útil de ocupar um espaço deixado de lado pelos historiadores de formação diante dos quadrinhos, mas passa longe de fazer um trabalho aprofundado quando vai discutir sobre quadrinhos e História. Ali impera o que chamamos grosseiramente de positivismo, na pior acepção do termo. Nesses autores o entendimento de que o ofício do historiador reside na busca ou identificação de acontecimentos no passado como reflexos do real, tal como haviam ocorrido é correlata a um diálogo inconsistente em nível inter e transdisciplinar com os estudos históricos e debates historiográficos contemporâneos.

      Atenciosamente,

      Márcio dos Santos Rodrigues

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    2. Sobre o aspecto que você levanta ao dizer "sempre nos prendemos muito aos documentos oficiais": Olhe a seguinte formulação de um renomado professor pesquisador de quadrinhos, Waldomiro Vergueiro sobre a natureza de uma análise histórica de quadrinhos, em um trabalho recente:

      “A análise histórica utiliza documentação primária devidamente reunida e autenticada, muitas vezes disponível em acervos de colecionadores ou dos próprios artistas de quadrinhos. Também irá se basear em testemunhos recolhidos de pessoas que participaram diretamente dos fatos relatados, realizando, então, a partir desses dados, a reconstituição dos acontecimentos como eles ocorreram, da forma mais fidedigna possível” (VERGUEIRO, Waldomiro. Pesquisa Acadêmica em Histórias em Quadrinhos. São Paulo: Criativo, 2017, p.106).

      A princípio, a formulação não aparenta nada de errado. Afinal, a escrita da história recorre a documentos, aos testemunhos e lida com fatos. Há inclusive uma certa concepção de arquivo esboçada. Todavia, há nessa formulação uma preocupação mais de ordem técnica do que de caráter epistemológico sobre a noção de documento ou da especificidade de uma análise histórica. Vamos por partes: Primeiramente, trata-se da percepção de um autor cujo campo de formação lida igualmente com documentos, mas os compreende de forma distinta da dos historiadores. O que a Biblioteconomia e a Documentação entendem como documento pode ter sua razão de ser dentro dos referidos campos, mas em História não nos fornece uma operacionalidade ou instrumentalização interessante, pois é demasiado preso a um aspecto legalista e institucional. Historiadores não estão preocupados exclusivamente com a informação contida nos documentos, nem com a autenticidade e operam inclusive com aqueles produzidos para além dos espaços institucionais. As fontes que hoje o historiador pode e deve empregar são mais do que documentos oficiais. Longe de exigir o mesmo nível de familiaridade, mas sim a necessidade de um maior diálogo interdisciplinar, cabe discorrer sobre os aspectos que ela nos oferece em História. Sobre a passagem “A análise histórica utiliza documentação primária devidamente reunida e autenticada”, cumpre observar que mesmo com autenticação toda e qualquer documentação não é válida por si mesma. Um conjunto de documentos só se torna utilizável em uma análise histórica pela validade conferida aos documentos dentro de determinado problema; problema que é resultado de afinidades pessoais, demandas coletivas, escolhas teóricas e metodológicas. A objetividade e a cientificidade da História não são como nas “ciências duras” e se efetivam no âmbito dessas escolhas à medida que o historiador explicita, dentro de critérios razoáveis de seu campo, suas estratégias metodológicas, bem como os limites de sua abordagem. Documentos pouco ou nada confiáveis, sem caráter oficial e por vezes oficioso, podem ser igualmente válidos em uma análise histórica. Afinal, são tão ou menos confiáveis do que os autenticados, não é?

      Márcio dos Santos Rodrigues

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    3. O segundo ponto a ser debatido na citação que apresentei é “muitas vezes disponível em acervos de colecionadores ou dos próprios artistas de quadrinhos”. Não há nada de errado com a passagem. Cumpre lembrar apenas que “o que sobrevive não é o conjunto daquilo que existiu no passado, mas uma escolha efetuada quer pelas forças que operam no desenvolvimento temporal do mundo e da humanidade” (LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: Editora da Unicamp, 2003, p.525). Pelo fato de que o que nos chega é resultado de uma seleção do passado, nenhum testemunho forneceria possibilidades de uma reconstituição total ou mesmo quase fidedigna dos acontecimentos tal como eles ocorreram. Um testemunho mesmo sendo coletado de alguém que tenha participado diretamente acaba sendo uma interpretação sobre um fato, não o fato em si. O passado em si está em outra situação temporal e por isso mesmo, é inacessível de maneira objetiva. O testemunho inclusive é uma representação do passado que se que se configura em um presente. Um historiador deve, diante de “testemunhos recolhidos de pessoas que participaram diretamente” inclusive examinar as intenções do testemunho mais do que simplesmente coletá-lo e utilizá-lo em sua narrativa como uma prova documental ou comprovação de um pressuposto, pois todo e qualquer relato é construído e apresentado com intencionalidades e com pretensões a querer ser lido de uma certa maneira (LE GOFF, 2003, p. 525-539). O documento não é qualquer coisa que ficou ou sobrou do passado, mas um produto da sociedade que o fabricou, segundo as relações de força que aí detinham o poder. A história visa mais a compreender do que meramente descrever ou reconstituir os “acontecimentos como eles ocorreram, da forma mais fidedigna possível”. Trata-se de um equívoco bem comum, de imputar à história a tarefa de coletar dados do passado, como se os historiadores fossem garimpeiros diante de riquezas que se apresentam em estado bruto. Sendo assim, a ideia de resgate histórico, que é bastante comum na linguagem cotidiana e inclusive entre pesquisadores pressupõe uma atitude passiva de registro apenas.

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  16. Boa tarde, Márcio. Parabéns pelo artigo. Gosto muito de HQs e seu texto mostrou como os EUA (maior mercado dos quadrinhos) tendem a mostrar o "outro", fato também observado nas produções cinematográficas. Fugindo do lugar comum, representado pela Marvel e DC, percebemos que existem bons exemplos de publicações tendo a cultura oriental como temática. A questão da alteridade tem um grande aliado na utilização das HQs em sala de aula. O exemplo dos leões do zoológico funciona como uma analogia aos atritos sociais ocidente-oriente. Qual a faixa etária que você recomenda para a utilização dos exemplos que você utilizou em sala de aula?

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    1. Caro Marcelo, boa tarde. No campo do ensino-aprendizagem e considerando a especificidade dessas produções, recomendaria a faixa etária correspondente a do Ensino Médio.

      A minha ideia aqui foi também de pensá-los no âmbito do Ensino superior, em pesquisas que fossem desenvolvidas em trabalhos de conclusão de curso, dissertações e teses.

      Agradecido pela pergunta.

      Márcio dos Santos Rodrigues

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  17. parabéns pelo trabalho! quadrinhos são realmente muito interessantes de serem analisados, pois contém muitas informações que podem ser trabalhadas de muitas formas, dentro desses quadrinhos em que você apresentou no texto algum em especifico trata a figura da mulher? também gostaria de saber quais as melhores maneiras de trabalhar com os quadrinhos com ensino médio e fundamental. atenciosamente Franciele Marcos Velho

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    1. Cara Franciele, boa noite.

      Sobre a figura da mulher mencionei no texto “O Mundo de Aisha: A revolução silenciosa das mulheres no Iêmen” (aqui foi lançado pela Editora Nemo e é uma obra ainda em circulação). Mencionei os trabalhos da quadrinista iraniana Marjane Satrapi (no texto deixei claro que são particularmente as produções mais exploradas quando se pensa na relação entre Oriente Médio e quadrinhos. Eu, particularmente, acho que eles soam como o exemplo mais usual, batido em análises de quadrinhos e Oriente Médio. Daí, meu texto buscou apresentar outras fontes). “Bye Bye Babylon: Beirut 1975–1979” de Lamia Ziadé, outra produção que discuti, também apresenta particularidades sobre a condição feminina no Oriente Médio.

      Há reflexões sobre a forma como a representação da mulher é construída na série "The 99".

      Nos quadrinhos norte-americanos há algumas personagens femininas muçulmanas (se for considerar o aspecto religioso dos super-heróis e super-heroínas há alguns exemplos interessantes). Citaria aqui as personagens Monet St. Croix (do grupo do X-Factor, do universo dos mutantes da Marvel), Sooraya Qadir (do grupo dos X-men. Ela naseu no Afeganistão e usa o codinome Pó. Visualmente ela chama a atenção pelo uso da burca) e a Kamala Khan, a Miss Marvel. São personagens criadas nos EUA, mas servem para discussão em torno da representação de mulheres muçulmanas ou oriundas dos países do Oriente Médio nos quadrinhos.

      Sobre as melhores formas de se trabalhar com quadrinhos no ensino médio e fundamental: a primeira orientação é que se tenha em mente qual produção é mais adequada ao público-alvo. Critérios como faixa etária e grau de conhecimento sobre as produções são aspectos importantes. Além disso, sempre que possível parta do conhecimento prévio dos alunos. Os quadrinhos podem ser referências do imaginário dos alunos. Eu particularmente utilizo quase sempre quadrinhos em minhas aulas por meio de projeções. A escola deve ter necessariamente materiais como data-show. Se preferir manusear quadrinhos com alunos é necessário que os materiais sejam disponíveis, disponibilizados em bibliotecas. Os quadrinhos podem ser analisados tanto no aspecto formal, mas eles não são simplesmente meio, um suporte. Eles devem ser analisados como práticas que constroem sentidos, interpretações.

      Obrigado.
      Atenciosamente,

      Márcio dos Santos Rodrigues

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  19. Olá, professor Márcio Rodrigues! Parabéns pelo trabalho,leitura muito agradável. Sou professora da Educação Básica e tenho muita vontade de trabalhar com quadrinhos em sala de aula, no entanto, tenho algumas dificuldades, principalmente no como iniciar. Tenho a seguinte inquietação,como desconstruir o discurso dos quadrinhos escritos sob uma perspectiva Ocidental sem incorrer no risco de cair na armadilha dualista entre bem x mal?

    Abraços e mais uma vez, parabéns pelo texto maravilhoso!!

    Lidiana Emidio Justo da Costa

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    1. Boa noite, Lidiana. Algumas produções buscam desconstruir o discurso hegemônico em torno do Oriente e escapar desse dualismo ou reducionismo. Creio que são obras que apresentam uma postura de pensar o Outro com bases distintas e inclusive se colocam no lugar do outro, assinalando uma ênfase na alteridade. Para não incorrermos nessa armadilha creio que devemos problematizar as bases com as quais operamos para pensar o Oriente. Temos que historicizar as nossas ideias, formulações e refletir sobre a maneira como elas são construídas e contribuem para disseminar falsas concepções sobre o Oriente médio.

      Obrigado pela leitura.

      Márcio dos Santos Rodrigues

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  20. Boa Tarde Márcio. Parabéns pelo texto!! No final do artigo tu colocas “Trata-se de um levantamento parcial de um universo amplo e ainda pouco explorado” – te pergunto, sendo a mudança de mentalidade um processo lento quais alternativas que podemos adotar (nós enquanto professores) para que esse “universo” seja mais aproveitado? Abraço, valeu pelas dicas de HQs.

    Felipe Rosenthal Rabelo

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  21. Boa noite,parabens pelo excelente
    texto,sempree gostei bastante do uso das HQs em sala de aula, acredito que é uma forma de aproximar os jovens de uma disciplina tida as vezes como chata, por conter muitos textos.Lendo seu texto tive uma grata surpresa ao ver o quão grande e diversificado é o universo das HQs orientais, estamos tão acostumados a consumir o que é produzido pelo mercado norte americano, que deixamos as vezes de conhecer produções extremamente interessantes produzidas por outros mercados.
    Gostaria de saber como é visto o estudo das HQs no meio acadêmico? Existe algum preconceito em relação a elas? Elas podem ser utilizadas como fontes históricas?
    Desde já agradeço sua atenção.

    Aline Leite Xavier de Castro

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    1. Cara Aline, anteriormente a pesquisa sobre quadrinhos no país era quase que exclusividade do campo da Comunicação Social. Hoje áreas diversas têm empregado os quadrinhos como um possível objeto de reflexão. Nem sempre o uso dos quadrinhos é visto como algo positivo e dependendo da situação é um tanto complicado encontrar orientação adequada. Todo pesquisador de quadrinhos em História acaba sendo por vezes autodidata.

      Há alguns eventos também que privilegiam os quadrinhos como objeto. Todavia, parte dos eventos ou dos grupos de pesquisa estão ainda muito presos aos ditames dos pesquisadores da ECA da USP, que inclusive se valem do discurso de que por serem os primeiros a pesquisarem quadrinhos seriam as vozes autorizadas para definir o que pode ou não ser pesquisado e como se pode pesquisar quadrinhos. Inclusive desconsideram a fala de historiadores e empregam vulgarizações do conhecimento histórico. Como estão presos muito ao mercado editorial não estabelecem críticas adequadas ou isentas sobre o que propõe pesquisar. Há, assim, no meio acadêmico muita endogamia, em que grupos, dependendo dos meios que dispõem, negligenciam outros projetos ou abordagens existentes no mesmo campo intelectual. Atualmente a minha proposta é de fazer um uso interdisciplinar que não coloque a história como secundária, em detrimento de outros campos.

      As HQs podem ser uma fonte para os estudos históricos, mas desde que não sejam interpretadas, em virtude do seu caráter de matéria ficcional, como um registro que passa à margem do social. Tendo em conta que quadrinhos, como qualquer outra prática cultural, são produzidos em um determinado tempo e espaço, é possível atribuir a eles uma participação no mundo social, até mesmo de natureza política e ideológica. Todo quadrinho é histórico. Creio que não precisamos só pensar como históricos aqueles quadrinhos que tratam de temas "do passado", como se fossem reflexo de uma realidade de outro tempo. Todo quadrinho é histórico, para reafirmar o que apontei anteriormente.

      Atenciosamente,

      Márcio dos Santos Rodrigues

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  22. Boa noite Márcio Rodrigues
    Parabéns pelo texto. Que HQs você poderia sugerir para utilização na educação básica na temática da história do Brasil?
    Atenciosamente
    Anna Carolina de Abreu Coelho

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    1. Cara Anna Carolina, boa noite.
      Há uma produção nacional bem vasta, diversificada, com temas bem ricos que pode ser empregada no ensino da História do Brasil. Vai depender muito do tema que você quer trabalhar. Se for tratar da escravidão no país sugiro os trabalhos do autor Marcelo D'Salete (particularmente, "Cumbe" e "Angola Janga". São obras que tratam da resistência de negros escravizados). Há uma série de produções como Casa Grande & Senzala em Quadrinhos.

      Se for trabalhar o período da ditadura militar há produções produzidas tanto no período quanto posteriormente. Há alguns anos eu formulei uma atividade para o Portal do Professor do MEC sobre a relação dos quadrinhos com o período. Segue o link: http://portaldoprofessor.mec.gov.br/fichaTecnicaAula.html?aula=31930

      Eu tenho materiais que posso disponibilizar sobre quadrinhos brasileiros que trabalham temáticas históricas. Pode escrever para o meu email: marcio.strodrigues@gmail.com

      Atenciosamente,

      Márcio dos Santos Rodrigues

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  23. Olá Márcio
    Parabéns pelo texto, enquanto acadêmica fico muito feliz ao encontrar reflexões como esta, a cerca de novas possibilidades para o ensino da História, grata pela partilha de conhecimento.
    Tens alguma indicação de H.Q. para o ensino de História Moderna?
    Atenciosamente
    Vitoria C. S. Beira

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  24. Boa noite, Caro Márcio.
    No que diz respeito a utilização de HQs em sala de aula, como ferramentas didáticas, e estendendo a questão para outras mídias, como os filmes, por exemplo, Você julga como uma abordagem adequada, em sala de aula, a utilização de mídias com representações permeadas pelo orientalismo, como ferramenta para auxiliar os alunos a identificar e romper com tal perspectiva?
    Rafael de Medeiros Alves.

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