Marília Fabiano Roncato Sagula & Nathália Lourenço Belodi

DO “SCHENTI” AO “KALASIRIS”: AS QUESTÕES QUE PERMEIAM A CONSTRUÇÃO DO VESTUÁRIO NO EGITO ANTIGO

Quando o objeto de pesquisa é moda é habitual corresponder o assunto que parece vazio de valores com frivolidades do mercado de massa. Porém, moda é uma maneira de como uma sociedade vê o mundo e expressa os seus valores, sendo assim, uma forma de comunicação não-verbal. Desta maneira, entender a construção do processo da indumentária desde sua origem pode ser relacionado diretamente com a história dos homens e sua evolução através dos tempos. No que diz respeito ao egípcio, pelo território possuir um clima quente e seco, este vestia-se com o mínimo de roupas que acabava não sofrendo variação entre as castas, porém no que tange as relações sociais, a sociedade egípcia transferiu a classificação hierárquica social para a construção da indumentária, que mesmo possuindo o clima árido subtropical, estabeleceu esta divisão social na vestimenta através dos signos de riqueza que eram os adornos, transparências, perucas e as demais ornamentações desenvolvidas. Portanto, a partir dessa sociedade é possível compreendermos como se deu o processo de evolução do ato de cobrir o corpo, além do desencadeamento da utilização da moda como uma ferramenta de classificação social. Esta pesquisa é baseada na revisão da literatura e de imagens existentes sobre a história e a indumentária do Egito Antigo utilizando como suporte de pesquisa os autores Brissaud (1978), Laver (1989), Woodhead (1991), Nery (2003), Braga (2004), Köhler (2005), Leventon (2009), Boucher (2010),Mokhtar (2010) e Sasaki (2010) e a adaptação cinematográfica Os Dez Mandamentos, dirigido por Alexandre Avancini.

A construção histórica do vestuário egípcio
Conforme Brissaud (1978) a civilização dos primeiros Egípcios era intermediária entre as dos caçadores e dos agricultores porém, de acordo com Mokhtar (2010) as populações nômades da África saariana, quando viram a região mais seca e desértica com a diminuição do volume de chuvas, se agruparam no Vale do Nilo – que, de acordo com Woodhead (1991) foi naturalmente dividida em Alto e Baixo Egito –, conforme figura 1, em aldeias frente a necessidade do trabalho em conjunto para se utilizarem das inundações para a irrigação,portanto os agricultores estabeleceram de forma progressiva seu estilo de vida no vale do delta, de forma que os egípcios adotaram um modo de vida pastoril e agrícola tendo o suprimento permanente de água nas margens do rio.O que operou uma mudança social e política considerável frente a vida em comunidade fixa, visto que a noção de autoridade e propriedade começaram a aparecer nesta sociedade.



Figura 1 – In WOODHEAD, 1991, p. 56

Foi então, segundo Woodhead (1991), por volta de 3.000 a.C. que com poucas barreiras geográficas e políticas a serem superadas, o Alto e o Baixo Egito foram unificados sob um único soberano, que instalou sua capital em Mênfis. Após isso, ergueram-se cidades em Abidos, Elefantina e Hieracômpolis. Woodhead (1991) diz ainda que o surgimento da primeira dinastia dos faraós foi assinalado pelo consolidação política do Egito nesta data, que produziu uma sociedade com um sistema de escrita elegante, governos teocráticos e habilidosa quanto a construção arquitetônica e artística.  No que tange o vestuário, segundo Melissa Leventon (2009) a vestimenta permaneceu relativamente inalterada entre 3.000 a.C e 1.500 a.C, considerando a representação mais antiga que dispomos sobre este vestuário, no Antigo Império (3.000 a.C) o “schenti” – tanga feita de tecido, enrolada várias vezes ao redor do corpo e presa por um cinto – foi utilizado pelos egípcios. Conforme figura 2.Este traje permaneceu sendo utilizado até o apogeu do Antigo Império com relação as roupagens que tornaram-se marcas para distinguir o monarca e os nobres das classes inferiores e uma espécie de saia justa – feita com tecido caro – e presa também por um cinto foi acrescentada ao vestuário.


Figura 2 – In KÖHLER, 2005, p. 64

De acordo com Mokhtar (2010) foi só após a destruição do poderio hicso – povo semita asiático – no Delta do Nilo e o estabelecimento da XVIII Dinastia que consolidou e estendeu os domínios do Egito que houve o estabelecimento do Novo Império (1.580 a.C.) e segundo Köhler (2005), foi com essa instauração que o “kalasiris” – uma túnica longa e unissex – foi introduzido na vestimenta. O “kalasiris” possuía alguns variantes, alguns não tinham mangas, outras possuíam mangas curtas e estreitas e algumas longas e bastante folgadas, como também existia uma espécie de casaco que cobria o corpo do abdome aos quadris, este traje também poderia variar de largura, sendo, as vezes, largo e solto e outras justo. No que diz respeito a elaboração da vestimenta, Köhler (2005) diz que havia duas maneiras de se fazer o “kalasiris”, sendo tricotado – peça curta, onde a largura do tecido determinava o comprimento do traje – ou em uma só peça ou feito com tecidos recortados e costuras laterais. Conforme figura 3.Levando em consideração que os trabalhadores acabavam utilizando o mesmo estilo de roupa, ainda conforme Köhler (2005), estes adotavam de franzi-la para aumentar a liberdade de movimento, o que resultava em uma vestimenta mais curta do que das classes mais elevadas.


Figura 3 – In Os Dez Mandamentos – O filme, 2016

No que diz respeito aos calçados, os egípcios foram os inventores das primeiras sandálias que, segundo Sasaki (2010) possuíam uma correlação com o sagrado e eram utilizadas como vestimenta cerimonial, principalmente nos templos, possuindo uma função social. Dois estilos foram desenvolvidos, uma sandália rasteira e com tiras, influenciada pelo clima e pela geografia do Egito e outra de influência Hitita – povo indo europeu, que vivia onde atualmente fazem parte a Turquia e regiões do Líbano e da Síria – que possuía o bico levantado, conforme a figura 4, e foi o percursos da “poulaine”.Para Laver (1989) a vestimenta egípicia era muito mais leve e sucinta do que a dos povos da Assíria e da Babilônia, tendo em vista que o clima era muito mais quente e pela influência climática as pessoas das classes mais baixas e até mesmo os nobres andavam com poucas roupas, feitas em suma, por fibras leves e fáceis de serem laváveis constituídas de natural vegetal, porém seu uso tanto da indumentária quanto de adornos eram usados como base de distinção de classes. 

Figura 4 – In WOODHEAD, 1991, p.145

A relação entre o clima e os têxteis utilizados na confecção do vestuário 
O clima árido subtropical do Egito influenciou sua indumentária, fazendo com que os egípcios buscassem roupas leves e frescas, afirma Braga (2004). Desta forma, no tocante ao têxtil utilizado no Egito Antigo,Boucher (2010) defende que, levando em consideração que a fibra animal era considerada impura nesta sociedade a matéria-prima de mais destaque era a fibra natural vegetal, mais especificamente o linho e o algodão que em suma oferecem vantagens positivas como leveza, frescor e facilidade na limpeza da fibra. Desta forma, considerando o clima semidesértico estes se tornam proficientes como matéria-prima tendo em vista os hábitos de higiene dos egípcios por conta do clima. O linho carregava consigo o significado de pureza, a pureza dos cuidados com o corpo principalmente no que corresponde às classes altas e médias que possuíam o uso de cosméticos e perfumes.

A utilização da moda como uma ferramenta da classificação social
Foi na sociedade egípcia que ocorreu o desencadeamento da classificação do vestuário pensada como classificação hierárquica. Em suma, a distinção das classes se deu por adereços e penteados, tendo em vista que o vestuário se restringia conforme as características climáticas do território.

No que diz respeito aos adereços, Leventon (2009) traz informações sobre alguns adornos utilizados para simbolizar a posição real, como o rabo de leão que Ptolomeu II Filadelfo utilizava como representação de sua posição de chefe, também a “pschent” – coroa que personifica o domínio sobre o Alto e o Baixo Egito –, o “uraeus” – fita que ostenta uma serpente na parte dianteira – utilizado por Cleópatra como símbolo de realeza e o “khepresh” – a adereço militar – utilizado por Ramsés II. Segundo Boucher (2010) os adereços e joias, conforme podemos observar nas figuras 5-7, eram usados por pessoas do círculo de nobres e à realeza, pertenciam também às divindades e defuntos, eram produzidos de metais preciosos e pedras tradicionais como ouro, prata, lápis-lazúli, turquesa, jaspe vermelho, entre outras coisas. Os adornos mais utilizados, em geral por ambos os sexos eram os braceletes, colares, brincos, pingentes e amuletos.


Figura 5 – In NERY, 2003, p. 23

Figura 6 – In WOODHEAD, 1911, p. 164-165

Figura 7 – In NERY, 2003, p. 28

Já os penteados, se resumiam em perucas, feitas com cabelo natural ou fibras de linho e palmeira, usados tanto pelas mulheres quanto pelos homens. Os egípcios tinham como hábito de higiene a raspagem da cabeça e as mulheres até o início do cabelo, por medo de doenças que pudessem dar fim ao povo do Egito.

Considerações finais 
Esta pesquisa fez considerações acerca da constituição do vestuário egípcio, utilizando como suporte de pesquisa os autores Brissaud (1978), Laver (1989), Woodhead (1991), Nery (2003), Braga (2004), Köhler (2005), Leventon (2009), Boucher (2010), Mokhtar (2010) e Sasaki (2010) que discorreram sobre esse assunto perpassando por suas temáticas históricas e geográficas. A construção da indumentária egípcia foi permeada por algumas principais questões, sendo elas: o clima e a geografia local, a construção do vestuário como uma ferramenta de expressão de valores e também a utilização deste como classificação hierárquica da sociedade.

No tocante ao aldeamento e o início da prática agrícola permeado pela mudança para vida sedentária as margens do Nilo, de acordo com Woodhead (1991) esta significou uma mudança social e política que instaurou noções de propriedade e autoridade nesta sociedade. Onde, mesmo estando em uma região de clima desértico, a prática de “cobrir o corpo” foi colocada e se deu a utilização do “schenti”. Em relação a instituição do “kalasiris” no vestuário dos egípcios e da utilização concreta de ornamentos e diferenciação de tecidos como uma ferramenta de diferenciação de castas, segundo Mokhtar (2010) e Köhler (2005) essa se deu com a instauração do Novo Império, após a derrubada de um governo estrangeiro que tomava conta da sociedade egípcia, onde é possibilitado considerar o surgimento de uma necessidade íntima a auto afirmação de superioridade. Onde Leventon (2009) nos traz a utilização de adornos para simbolismo da posição real.

Referências
Marília Fabiano Roncato Sagula é graduanda em História pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Email: marilia.sagula@yahoo.com.br
Nathália Lourenço Belodi é graduanda em Moda pela Universidade Estadual de Maringá (UEM).
Email: nathaliabelodi@hotmail.com
Sob orientação do prof Dr. Ronaldo Salvador Vasques.

BOUCHER, François. História do vestuário no ocidente. São Paulo: Cosac Naify, 2010
BRAGA, João. História da moda: uma narrativa. São Paulo: Ed. Anhembi Morumbi, 2004.
BRISSAUD, Jean-Marc. O Egito dos Faraós. Tradução: Luiza Tertulino Vieira. Rio de Janeiro: O. Pierre, 1978.
KÖHLER, Karl. História do Vestuário. Tradução: Jefferson Luis Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
LAVER, James. A roupa e a moda: uma história concisa. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
LEVENTON, Melissa. História ilustrada do vestuário: um estudo da indumentária, do Egito Antigo ao final do século XIX. Tradução: Livia Almendary. São Paulo: Publifolha, 2009.
MOKHTAR, Muḥammad Jamal al-Din. História Geral da África – África Antiga. Brasília: UNESCO, 2010.
NERY, Marie Louise. A evolução da Indumentária: subsídios para criação de figurino. Rio de Janeiro: Ed. SENAC, 2003.
Os Dez Mandamentos – O filme. Direção: Alexandre Mancini. Produção: Marília Tedeschi de Toledo e Douglas Tavolaro. Brasil: Paris Filmes, 2016.
SASAKI, Silvia. Moda no Médio Oriente: aspectos históricos e culturais sob influência ocidental. In: VI Colóquio de Moda, 2010, São Paulo. En Moda Escola de empreendedores. São Paulo: Anhembi Morumbi, 2010.
WOODHEAD, Henry. A Era dos Reis Divinos. São Paulo: Abril, 1991.


6 comentários:

  1. Olá Marília e Nathália, interessante aproximação entre a História e a Moda.

    A indumentária é um referencial de distinções sociais, no caso do Egito Antigo essa diferença parece ser um pouco mais sútil do que outras sociedades próximas em termos geográficos e temporais. Além das roupas e jóias quais outros elementos poderiam ser utilizados como distinção social? Existia um mercado próprio dessa questão? E a maquiagem, também entra nesse quesito?

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  2. Olá, Hezrom! Muito obrigada!

    Além dos adornos citados no texto como simbolismo da posição real, a maquiagem também entra como elemento utilizado na distinção social, o registro mais antigo e significativo da utilização da maquiagem em rituais de beleza e higiene vem do Egito Antigo. Na época, o uso da maquiagem era privilégio das altas classes, como reis e aristocratas.
    Em relação ao mercado, sabemos que o ouro utilizado na confecção desses adornos era o principal produto exportado pelos egípcios, mas não encontramos a informação sobre um mercado próprio desses acessórios.

    Abraços, Marília e Nathalia

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  3. Ana Paula Sanvido Lara3 de outubro de 2018 às 22:41

    Caras Marília e Nathalia, li em muitos lugares que para os egípcios a maquiagem era também uma forma de proteção. Se somente os das camadas mais altas podiam utilizá-las, as pessoas das camadas mais baixas possuíam alguma outra forma, como uso de amuletos? Os acessórios, como colares e braceletes, podiam ser utilizados por qualquer pessoa ou somente pelo monarca e nobreza?
    Abraços!
    Ana Paula Sanvido Lara

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    1. Boa noite, Ana Paula

      O uso de acessórios em suma, eram mais utilizados por classes sociais mais altas porém os servos que ficavam em torno da nobreza poderiam ser presenteados com acessórios mas com qualidade inferior, pois as jóias mais coloridas e cheias de ouro ainda pertenciam aos nobres, segundo estudos eles acreditavam que possuíam valor mágico que garantia um tipo de proteção espiritual. Mesmo as peças meramente decorativas, não precisando ser preciosas eram consideradas amuletos e símbolos de boa sorte e a relação de proteção da maquiagem não era usada como amuleto, mas sim como proteção do clima geográfico.

      Abraços, Marília e Nathália

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  4. Bom dia Marília e Natália, em relação as classes sociais, existia diferença também na cor da vestimenta?

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  5. Boa noite, Jaciene!

    Em suma a diferenciação das classes sociais se dava pelos adornos utilizados pela "elite". O material utilizado na confecção da vestimenta era a fibra natural vegetal, mais especificamente o linho e o algodão, o que consumava em roupas de tons claros para quaisquer estamento da sociedade.

    Abraços, Marília e Nathália

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