Nelson de Jesus Teixeira Júnior

LENDO O OCIDENTE A PARTIR DO ORIENTE: O NARRADOR MACHADIANO EM QUESTÃO

Questões iniciais
O presente ensaio visa discutir sobre a maneira como o narrador machadiano, em uma passagem da crônica de “1 de julho de 1876”, estabelece diálogo entre os cenários políticos do Oriente e do Brasil com vistas à formulação da visão crítica do leitor brasileiro. Trata-se, na verdade, de uma conexão intercultural em que Joaquim Maria Machado de Assis, através de seu narrador, põe em questão culturas diferentes que, sem prejuízo, poderiam estabelecer aproximação entre si no ato da compreensão sobre o cotidiano social e político de 1876, seja ele (o cotidiano) carioca ou brasileiro. Ao final, colocaremos em diálogo a Literatura e a História, áreas necessárias à compreensão sobre a construção do leitor em seu tempo.

Joaquim Maria Machado de Assis contribuiu, sob o pseudônimo de Manassés, à “Revista Ilustração Brasileira”, escrevendo uma série de crônicas com o título de "História de Quinze Dias" e, dentre essas narrativas, o texto de “1 de julho de 1876” traz, na apresentação, uma referência ao Oriente. Essa referência levará o leitor da Revista a assumir uma postura dialógica ao organizar sua compreensão sobre os cenários internacional elocal, bem como oriental e ocidental.

Esse processo de apresentar a cultura do outro enquanto algo que, ao invés de nos afastar, nos aproxima, termina criando a condição saudável, ao leitor do século XIX brasileiro, à reformulação de novos sentidos acerca da cultura. Stuart Hall apresenta esse processo de identidade através das seguintes considerações:

“As culturas nacionais, ao produzirem sentidos sobre "a nação", sentidos com os quais podemos nos identificar, constroem identidades. Esses sentidos estão contidos nas estórias que são contadas sobre a nação, memórias que conectam seu presente com seu passado e imagens que delas são construídas”. (HALL, p. 51, 2005).

Essas conexões entre culturas diferentes contribuíam para a formação crítica de um leitor que não se restringia ao cotidiano próprio e, nesse sentido, o narrador Manassés tinha papel destacado na narrativa em questão. Wolfgang Iser amplia esse alcance ao leitor, através do texto ficcional, da seguinte maneira:

“O folhetim impõe ao leitor uma determinada forma de leitura; as interrupções das conexões são melhor calculadas do que aquelas que, durante a leitura de um livro, são produzidas por motivos muitas vezes externos.  No folhetim, elas têm uma intenção estratégica. Os intervalos impostos ao leitor o forçam a imaginar algo mais do que seria o caso numa leitura contínua do mesmo texto. (ISER, 1999, p.  140).

Além das especificidades composicionais, as estruturais da crônica reforçam toda a recepção que poderia alcançar, e alcançava, a crônica.

Então, o Oriente, para muitos autores, não se configura como um lugar estranho ou, mesmo, alheio a tudo que acontece no ocidente e, já no século XIX brasileiro, essa perspectiva ocular parece tomar o narrador machadiano em determinado momento de sua narrativa. O que parece inovador é, na verdade, necessário à condição do próprio gênero crônica, visto que esse tipo de texto tem, em sua concepção, a ideia de “tragar” tudo que diz respeito ao cotidiano, seja ele antigo ou novo, local ou regional, nacional ou internacional, oriental ou ocidental.

Crônica de “1 de julho de 1876”
Tudo cabia (e cabe) na crônica, afinal, o leitor desse tipo de texto fragmentado não se assustava ao seu caráter em formato de mosaico, o que justifica, para o narrador, usar de suas diversas estratégias narrativas na composição do diálogo.  Todo esse esforço de recuperar o cotidiano para a crônica termina impactando na identidade de quem lê, pois, como assegura Clifford Geertz: “[...] nós somos animais incompletos e inacabados que nos completamos e acabamos através da cultura [...]”. (GEERTZ, p. 36, 1989). Essa completude se dá por meio do reconhecimento, também, do “mesmo” e do “diferente” que possuímos diante de nossa relação com o outro. E tal aspecto parece presente na discussão proposta pelo narrador machadiano.

Manassés inicia o texto fazendo alusão à tensão existente entre russos e otomanos que, posteriormente, seria consolidada oficialmente enquanto guerra russo-turca de 1877–1878. Apesar desse informe, guardadas as devidas proporções, o narrador não isola o fato oriental ao que os ocidentais brasileiros viviam (conforme observaremos posteriormente). Segue a apresentação:

“Pobre Oriente! Mísera poesia! Um profeta surgiu em uma tribo árabe, fundou uma religião, e lançou as bases de um império; império e religião têm uma só doutrina, uma só, mas forte como o granito, implacável como a cimitarra, infalível como o Alcorão”. (ASSIS, p. 29, 2011).

Para além da referência à tensão descrita, Manassés traz ao leitor nacional um pouco da cultura oriental. Isso, ao apresentar aspectos governamentais, religiosos e políticos que, ainda que não fossem familiarizados ao leitor, por meio das associações à poesia, ao povo e à pedra de granito, o receptor do texto poderia formular sua interpretação.

O narrador machadiano não parece satisfeito à apresentação anterior e, sem abrir mão de sua visão sobre os fatos orientais, faz uma “carga” de referências episódicas típicas da tensão que tomava aquele momento do Oriente. Nesse instante, o receptor dessa narrativa poderia firmar conclusões (ou dúvidas) sobre o decurso que tomava o Oriente naquele instante e que, guardadas as devidas proporções, ecoariam em outros lugares. Segue a passagem:

“Passam os séculos, os homens, as repúblicas, as paixões; a história faz-se dia por dia, folha a folha; as obras humanas alteram-se, corrompem-se, modificam-se, transformam-se. Toda a superfície civilizada da terra é um vasto renascer de coisas e ideias. Só a ideia muçulmana estava de pé; a política do Alcorão vivia com os paxás, o harém, a cimitarra e o resto”. (ASSIS, p. 30, 2011).

Manassés, neste instante inicial da citação, parece não somente tratar da questão do Oriente, mas, sobretudo, à questão do Ocidente, em especial a do Brasil, visto que as modificações históricas são típicas do cotidiano de todos, onde quer que vivam. O leitor desse texto era convidado, nesse instante, a se abrir às mudanças que são típicas da história de qualquer lugar, inclusive, à sua própria história local.

Nesse sentido, Oriente e Ocidente são apresentadas, também, como lugares que apresentam um dinamismo próprio às transformações, o que afronta à ideia de lugar encerrado, definido e inflexível às mudanças.

A postura do narrador machadiano, sem colocar o Oriente em uma condição inferior ao Ocidente, direciona-se ao que, posteriormente, reconhecerá Edward Wadie Said:

“De maneira bastante constante, o orientalismo depende, para a sua estratégia, dessa superioridade posicional flexível, que põe o ocidental em toda uma série de relações possíveis com o Oriente, sem que se perca jamais a vantagem relativa”. (SAID, 2007, p.19).

Ao invés de uma ideia de sobre posição entre os lados, Manassés partilha de um pensamento de complementação pela via da diferença e da semelhança. Desta forma, colocar Oriente e Ocidente em um espaço curto de escrita é, também, uma tentativa de “contaminar” o leitor sobre a ideia de que nos complementamos pela via das relações.

Em passagem posterior, na mesma crônica, o narrador machadiano traz uma figura que “tomba” durante todo esse momento de transformação política no Oriente: “Abdul-Aziz”. Sílvia Maria Azevedo identifica essa figura política como Abd-ul-Aziz, o qual foi obrigado, em maio de 1876, a abdicar em favor de seu sobrinho Murad. Vejamos o trecho citado:

“Pelas barbas do Profeta! Há nada menos maometano do que isto? Abdul-Aziz, o último sultão ortodoxo, quis resistir ao 89 turco; mas não tinha sequer o exército, e caiu; e, uma vez caído, deitou-se da janela da vida à rua da eternidade”.  (ASSIS, p. 30, 2011).

A morte de “Abdul-Aziz” parece ser a tônica desse trecho acima, mas o leitor entendia, também, que a autoridade desse último sultão ortodoxo não tinha valor algum sem o apoio militar, o que põe em dúvida qualquer qualidade individual do falecido diante do seu governo.

A morte e suas recompensas, o pós-morte, bem como o encontro com Alá após seu último suspiro é retratado da seguinte maneira na narrativa machadiana:

“Abdul explicou-se, referiu o seu infortúnio; mas o profeta atalhou-o, clamando: — Cala-te! És mais do que isso, és o destruidor da lei, o inimigo do Islã. Tu fizeste possível o gérmen corruptor das minhas grandes instituições, pior que a fé de Cristo, pior que a inveja dos russos, pior que a neve dos tempos; tu fizeste o gérmen constitucional. A Turquia vai ter uma câmara, um ministério responsável, uma eleição, uma tribuna, interpelações, crises, orçamentos, discussões, a lepra toda do parlamentarismo e do constitucionalismo. Ah! Quem me dera Omar! Ah! Quem me dera Omar! Naturalmente Abdul, se o profeta chorou naquele ponto, ofereceu-Ihe o seu lenço de assoar, — o mesmo que na mitologia do serralho substitui as setas de Cupido; ofereceu-lhe, mas é provável que o profeta lhe desse em troco o mais divino dos pontapés. Se assim foi, Abdul desceu de novo à terra, e há de estar aí por algum canto... Talvez aqui na cidade”. (ASSIS, 2011, p.31).

As “contaminações do Ocidente” sobre o Oriente não são bem vistas por Alá e, nesse instante, o leitor da crônica, através das associações entre o contexto descrito por Alá e o que ocorria no Rio, sabia muito bem o porquê.

Em outras passagens da narrativa, o olhar de Manassés passa por situações e locais diversos – como o Chile, por exemplo – que mantem uma linearidade que perpassa entre a política, o político, as pessoas, a sociedade mundial, a sociedade carioca...

Terminamos essa pequena discussão com a convicção de que já no século XIX brasileiro, aproveitando-se do desenvolvimento da imprensa e do Brasil, os autores já pensavam o Brasil através, também, das relações entre o Oriente e o Ocidente.

Questões finais...
Dentro dessas questões envolvendo antigo x novo, oriente x ocidente, nacional x internacional... vale lembrar o que propõe Nestor Garcia Canclini:

“Assim como não funciona a oposição abrupta entre o tradicional e o moderno, o culto, o popular e o massivo não estão onde estamos habituados a encontrá-los. É necessário demolir essa divisão [...]”.  (GARCIA CANCLINI, p. 19, 1989).

O narrador da crônica parece convicto de que as relações não podem ser estabelecidas por meio de compartimentos e de afrontas, afinal, se dessa maneira proceder, o leitor terá uma imagem distorcida acerca das práticas culturais.

Manassés, enquanto pseudônimo de Machado de Assis, parece contribuir para uma visão política de seu leitor ao relacionar situações “longínquas” às que aconteciam no dia-a-dia do leitor brasileiro no século XIX.  As situações discutidas no decorrer das passagens em análise possibilitam afirmar que o narrador machadiano visava, além de aproximar seu leitor às questões do Oriente, levá-lo à condição de compreender o Ocidente por meio do Oriente.  Afinal, ao invés de polos excludentes, havia muitos aspectos em comum entre esses dois lados.

Referências
Nelson de Jesus Teixeira Júnior é doutorando (2015 – 2019) do Programa de Pós-Graduação em Letras pela Universidade Estadual Paulista – UNESP, campus de São José do Rio Preto – SP.  Bolsista do Programa de Apoio à Capacitação de Docentes e Técnicos da UNEB, PAC-DT. Atua como professor da Universidade do Estado da Bahia – UNEB, Campus IX em Barreiras-BA, lecionando a disciplina“Estágio em Letras”.E-mail: j-nelson2004@ig.com.br 

ASSIS, Machado de. História de quinze dias, história de trinta dias: crônicas de Machado de Assis, Manassés. Sílvia Maria Azevedo (org.). São Paulo: Editora Unesp, 2011.
GARCIA CANCLINI, Nestor. Culturas Híbridas: Estratégias para Entrar e Sair da Modernidade. 2. ed. — São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1998.
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de
Janeiro: LTC, 1989.
HALL, Stuart.  A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro 10ª Ed. Rio de Janeiro: DP e A, 2005.
ISER, Wolfgang.    O ato da leitura: uma teoria do efeito estético – vol. 2.  São Paulo: Ed. 34, 1999.
SAID, Edward W. Orientalismo: o oriente como invenção do ocidente. Tradução Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

7 comentários:

  1. Oi Nelson. Parabéns pelo texto. A referida crônica de Machado de Assis representa um marco inicial da discussão sobre o Oriente na literatura brasileira do século XIX? Obrigado! Abraço!

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  2. Olá, Maicon Roberto Poli de Aguiar. Obrigado pela leitura! O Oriente era, assim como parte do que ocorria no mundo, motivo de reflexão no jornal impresso Oitocentista brasileiro e, desta forma, escritores e cronistas, como Machado de Assis, aproveitavam tais recortes para pensar o Brasil da época. Desta forma, atrevo-me a pensar que a situação presente na narrativa machadiana não é um marco inicial na literatura brasileira do XIX.
    Nada mais, Nelson de Jesus Teixeira Júnior.

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  3. Olá Nelson. Ótimo texto. Essa relação que Machado de Assis apresenta em seu texto, de compreender do Oriente mas com a visão do Ocidente seria é uma construção de uma alteridade? Os viajantes que vieram ao Brasil do século como Rugendas, Marthius e Spix apresentam uma separação bem grande sobre os modos de vidas que apresentam as 3 "raças" que compõem o brasil e do modo hierárquico é construído, nesse sentido Machado de Assis seria um precursor de novo modo de se entender o outro? Abraços!!

    Rodrigo Frasson.

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    1. Olá, Rodrigo Frasson. Obrigado pela leitura! Vejo a presença da alteridade e, para além de ver, considero que essa constituição de si por meio do outro era necessária à formação do leitor do XIX brasileiro. Não sei se precursor... até me arrisco a pensar que não... mas Machado tinha a consciência do que fazia, afinal fazia parte de um circuito de escritores que, a todo custo, buscavam pensar o país.

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  4. Boa noite, caro Nelson, inicialmente gostaria de apresentar algumas das minhas impressões sobre o artigo em questão, Inicialmente, como pontuado no artigo, A crônica em questão apresenta uma postura interessante, no que diz respeito ao rompimento com a abordagem orientalista, visto que, como o senhor apresentou em seu artigo, não há, na crônica de Machado de Assis a postura de superioridade em relação ao Oriente, e mesmo a questão da visão do oriente como um "lugar de mistérios" se faz praticamente ausente. Desta forma, guardadas as devidas proporções, que outras obras da literatura brasileira o senhor julga possuirem este mesmo merito, em relação a uma postura de alteridade para com o "oriente"?
    Rafael de Medeiros Alves

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  5. Caro Nelson, Estendendo minha pergunta anterior, Existem outras obras nacionais, de caráter puramente literário, que o senhor julga terem representado grandes contribuições para a História, no que diz respeito aos estudos de cultuaras distantes da brasileira?

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